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A FILOSOFIA, O CÃO E O HOMEM

      O vocábulo português “filosofia” — com símile escrita no italiano e no catalão — e ainda as palavras filosofía, no castelhano, philosophie, no francês, Philosophie, no alemão, philosophy, em inglês, decorrem do latim philosophia, ae, reproduzindo, incluso quanto ao som, o termo grego antecedente φιλοσοφία, este acaso já derivado de φιλόσοφος (φιλός > amigo, amante da σοφία > sabedoria; σοφός > sábio). O “amante” é o que se ata ou liga (do indo-europeu se-), é o amigo (lat. amicus), o que ama (lat. amo), termos que provêm do indo-europeu amma-, significando “mãe” (modelo fundamental do amor?).

      “Filósofo” não é, então, o sábio, é somente o amante ou amigo do saber, porque, como sentenciou Aristóteles, a possessão da sabedoria é imprópria do homem (Metafísica, 982b29). “Filosofia” é a amizade  do saber, não, pois, sabedoria, ou, quando equivalha a alguma sabedoria, à exclusivamente possível sabedoria humana (: estará reservada à visão beatífica ou facial de Deus a possibilidade de contemplação humana da sabedoria absoluta). Só Deus é absolutamente sábio (já o havia referido Simônide de Céosc.555-c.467 a.C.), porque conhece perfeitamente as coisas todas que são ou podem ser.  O homem pode ser amigo da sabedoria —para cujo conhecimento é vocacionado pela razão: propende ele a conhecer o numen das coisas, abdicando da mera consideração dos mitos (Aristóteles, Bkk.a)  Mas a amizade do filósofo não se restringe, nas origens, ao saber superior ou elevado, ainda que apenas humano: a filosofia é amizade pelo saber em geral, é a teoria (θεορία) do viajante ateniense, o platônico instinto dos cães de guarda, enfim: é curiosidade qualquer (VAN ACKER). 

      “Parece que fué Heráclito quien por primera vez empleó el término φιλόσοφος. Hay una venerable tradición que atribuye a Pitágoras la invención del vocablo. Según esta tradición, cuyos más destacados promotores fueron, en la antigüedad, Cicerón y Diógenes Laercio, eran llamados ‘sabios’ cuantos se dedicaban al conocimiento de las cosas divinas y humanas y de los orígenes y causas de todos los hechos; pero Pitágoras, habiendo sido interrogado acerca de su oficio, respondió que non sabía ningún arte, sino que era, simplemente, filósofo; y comparando la vida humana a las fiestas olímpicas, a las que unos concurrían por el negocio, otros para participar en los juegos y los menos, en fin, por el puro placer de ver el espectáculo, venía a concluir que sólo éstos eran filósofos.

 

La autenticidad de este relato, uno de los más bellos tópicos de nuestra cultura, ha sido discutida por la moderna crítica; más la anedocta vale en cualquier caso como emblema del noble y demasiado afán que reduce a la búsqueda del saber y que se ha conservado, durante milenios, como uno de los rasgos esenciales de la actitud filosófica” (MILLÁN PUELLES).

 
     
O rei lídio Creso, segundo Heródoto, teria dito ao ateniense Sólon ter este a fama de ser um  curioso (filósofo), porque viajava para ver outros países: i.e., para uma teoria (do grego θεορία, a que se ligam os termos especulação e contemplação) ou espetáculo (do latim spectaculum, i > o que pode ser objeto da visão, o que pode ser especulado ou, também, contemplado). Propriamente, a filosofia é especulação ou contemplação, é ver, conhecer teoricamente, não é agir, nem fazer (Aristóteles, Bkk. 982 b 19). Com que o turista moderno e contemporâneo, aparentado histórico, embora, de um mais próximo impulso haurido do estilo vitoriano, poderá ainda designar-se como filósofo, com a condição de que viaje para ver, preferentemente a fazer turismo de compras (: ir aos jogos olímpicos em busca de glória ou de lucro já não era, segundo se atribui a Pitágoras, uma atitude de filósofo). Para mais, se um turista, indo a outro país, não o queira ver, voltando-se apenas a introspectar-se em seu próprio interior de viajante, ele não precisaria, absurdamente, sair de seu lugar de origem: a filosofia é ver  a realidade, para conhecê-la. Mas esse turista não pode talvez propriamente envaidecer-se dessa trivial condição de “filósofo”—salvo se adotar, à raiz, uma ideologia animalista. É o que se depreende do fato de que, para Platão, o instinto (ou qualidade) de filósofo encontra-se nos cães de guarda, cuja natureza é “verdadeiramente amiga de saber”, uma vez que distingue “visão amiga e inimiga… pela circunstância de a conhecer ou não”. E como ser amigo de aprender é o mesmo que ser filósofo, Platão afirma que “também o homem, se quiser ser brando para os familiares e conhecidos, tem de ser por natureza filósofo e amigo de saber” (República, 376). Nesse sentido, o cão, filósofo por natureza inata; o homem, por natureza individual adquirida (ou hábito)…

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