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A HERMENÊUTICA E OS SENTIDOS CLAROS

    Efeito acaso acidental, o fato é que o postulado da racionalidade do legislador deu fundamento, modernamente, a uma linha de divisão da hermenêutica jurídica entre significados normativos claros —a dispensar a tarefa de compreensão— e significados obscuros —objeto a que se restringiria, em rigor, a missão da hermenêutica. Também na cosmologia física se passou a falar em “matéria escura”.

    Há uma dificuldade inicial, que se encontra em apontar uma evidência quoad se da claridade não dos conceitos e juízos significados mas, sim e primeiramente, dos termos e proposições significantes. Ambos esses grupos —de um lado, termos e proposições sinalizantes; de outro, objetos de conceito e de juízo sinalizados— constituem objeto formal da hermenêutica: os primeiros, objeto formal sub quo; os outros, objeto formal quod. A evidência destes últimos exige, não sempre, mas freqüentemente, a evidência daqueles.

    Mas essa evidência do significante é problemática. Desfiem-se, a propósito, alguns exemplos triviais, o segundo deles, por sinal, histórico. A um jurista de nossos dias, posto a ler, na original escrita cuneiforme, um texto normativo dos sumérios, não bastaria saber que coisa é um boi —objeto formal quod que se supõe no texto lido—, se não pode identificar a idéia de “boi” no desenho cuneiforme. Recentemente, a embaixada de um país árabe, atendendo ao pedido de um jurista lusófono, cogitou de remeter-lhe o texto do Código Penal desse país, com o objetivo de que esse jurista se dedicasse a projetado estudo juscomparatístico; o projeto adiou-se, a remessa do texto frustrou-se: por mais especialista em Direito Penal se quisesse exageradamente avaliar o tal jurista, o que ele não sabia e não sabe é a escrita árabe em que exclusivamente se editou o referido texto codificado.

    Esses exemplos põem à mostra, suficientemente, que a possibilidade de evidência dos conceitos jurídico-normativos significantes é, em verdade, apenas a suscetibilidade de uma evidência quoad nos. Quer dizer: algo só passível de ser evidente para alguns e não uma evidência por si própria, uma evidência per se notum est. Está-se até aqui, muito restringidamente, a considerar com preponderância as proposições jurídicas significantes textualizadas, mas pode adivinhar-se que mais se problematiza uma conjecturável evidência de proposições significantes não-textuais (p.ex., usos e gestos —como a ordem de parada feita por um policial).

    De par com essas dificuldades situadas no plano dos sinalizantes jurídicos, haveria ainda de estimar os problemas dos significados. Antes mesmo de considerar-lhes a correspondência —em que se engasta a questão dos homônimos e homógrafos, dos termos verbais análogos e equívocos—, deve registrar-se que a compreensão mesma dos objetos de conceito, à margem de sua relacionação com os verbos exteriores, já constitui um problema. Ao revés, porém, dos termos e proposições verbais, os conceitos e juízos mentais são suscetíveis de evidência quoad se, ainda que em apequenado número de casos. Assim, a título exemplificativo, as certezas metafísicas —“o todo é maior do que cada uma de suas partes”— e os primeiros princípios da razão tanto especulativa —“uma coisa não pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”— , quanto prática: “fazer o bem e evitar o mal”. Não será demasiado, até mesmo, estimar que certas conclusões dos primeiros princípios da razão prática sejam evidentes per se simpliciter “não matar voluntariamente o inocente”, “não furtar”, “não prestar falso testemunho”—, porque sua apreensão, se bem possa alguma vez falhar, é tendencialmente universal, só faltando em circunstâncias excepcionalíssimas.

    Adverte-se, à raiz da sustentação fundacional da linha restricionista da hermenêutica, o objetivo de reduzir conflitos no discurso prático —em que se inclui o jurídico—, para benefício da segurança e certeza na vida social. Mas é inevitável que, com símile restrição, põe-se em risco a própria razão de ser do discurso, atuando-se, de modo pontual, a mais larga pauta firmada pelo iluminismo, que tornou defesa, a pretexto de certa concórdia social, a discussão das questões últimas da vida. Por isso, a doutrina hermenêutica do sentido claro —doctrine du sens clair, die “Sens-Clair” Doktrin— merece a crítica de Karl Engisch, no sentido de que ela remata numa proibição de interpretar. É ela, possivelmente, o suporte das “interpretações” autenticadas ab initio.

    Ao postulado de racionalidade do legislador, enquanto conjunto de atributos essenciais e acidentais da função legislativa, não pode reconduzir-se, indistintamente, a crítica destinada à doutrina do sens clair.

    É advertível que esse postulado ou presunção de racionalidade não passa, freqüentemente, de uma ficção, especialmente diante de uma legislação instável e hiperinflacionada. Não menos, o Parlamento moderno e contemporâneo fornece a imagem de um legislador mítico —de fato, a referência antropomórfica ao “legislador” apenas contorna a realidade palpável do anonimato, da concorrência de escritas, dos grupos de pressão, das secretarias técnicas etc. Mas isso não infirma a idéia central de racionalidade da lei e, pois, reconduzidamente, de racionalidade de sua causa instrumental: ainda que esta se chame um tanto impropriamente “o legislador”. Não se trata de novidades modernas: Cícero ensinara que a lei não é outra coisa que a razão justa (lex nihil aliud, nisi recta…ratio); S.Tomás de Aquino também o afirmou: a lei é algo de razão (lex est aliquid rationis), é ordenação da razão (ordinatio rationis).

    Vários elementos —substanciais e acidentais— se apontam nesse postulado do legislador racional, assim os elenca François Ost:

1. o legislador não se contradiz

2. o legislador infraconstitucional respeita a Constituição

3. o legislador ajusta os meios aos fins que colima

4. o legislador nada faz de inútil

5. o legislador é equitativo

6. o legislador não é, no fundamental, imprevidente

(até aqui os predicados tidos por essenciais; seguem os ditos acidentais)

7. o legislador é correto na expressão

8. o legislador exprimiu-se livre e amplamente durante os trabalhos preparatórios da lei

9. o legislador é rigoroso na ordenação dos textos e na redação dos títulos das leis.


    Postular a racionalidade da lei e, portanto, do legislador não importa, contudo, na recusa absoluta de ambigüidades e colisões normativas. Modernamente, tratou-se mesmo de elaborar regras interpretativas para superar as antinomias no sistema de normas —antinomias que, diante mesmo dessas apontadas “regras de colisão”, são chamadas de aparentes. A vantagem esperável da adoção desse postulado, todavia, é distribuir o ônus da contra-argumentação. Trata-se de uma vantagem econômica, por certo, mas que repercute muito na esfera da segurança social: em síntese, até que se demonstre o oposto, o legislador é equitativo e observante da Constituição etc.

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