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O FATO DE HAVER ABORTOS ¿JUSTIFICA-LHES A DESCRIMINALIZAÇÃO?

Num mundo hiper-inflacionado de leis —e, com elas, não menos, de pretensões jurídicas, ante o vasto e muito alardeado rol de “direitos subjetivos”—, o tema da eficácia do Direito parece ganhar em importância. Mas essa relevância já se pusera à mostra entre os romanos: o Decreto de Graciano previa que as leis só se fazem firmes pela observância habitual. É preciso observar, inicialmente, que, de um lado, o desprezo à efetividade do Direito se molda ao normativismo jurídico, para cuja teoria a lei, tanto que estritamente observado o processo formal de sua elaboração, exausta a ocupação do jurista dogmático. De outro lado, tem-se, entretanto, o excesso oposto, o de um eficacismo ou factualismo jurídico: o Direito, de algum modo, equivaleria ao facto de sua aplicação social; nessa linha, poderiam identificar-se os vários positivismos históricos (v.g., Escola Histórica do Direito e Hegel), sociológicos (p.ex., Duguit: “…o direito é muito menos a obra de um legislador do que o produto constante e espontâneo dos factos”) e judiciários (Escola do Direito Livre —que um autor, com certa impiedade, chamou de “escola livre do direito”—, realismo norte-americano, realismo escandinavo).


Entre o dogmatismo legalista, alheio da questão da eficácia, e o eficacismo, há espaço para uma posição que considere, temperadamente, a importância da efetividade do Direito.

Primeiro, porque, enquanto res iusta, o Direito, evidentemente, reclama existência (: i.e., estar posto fora de suas causas), de modo que sua ineficácia corresponde ao injusto; assim vistas as coisas, já não se trata da eficácia jurídica na clave de um utilitarismo ou de uma “lógica da produtividade” (como já houve quem a referisse), mas da eficiência enquanto realização do justo concreto. Daí que a só existência de factos sociais não autoriza, simpliciter, o correspondente nascimento de direitos: o critério sumariado no aforismo ex facto oritur ius não dispensa um juízo axiológico.

A metódica do “fato consumado” —assim, porque há “consórcios” de fato avessos à configuração natural da comunidade familiar, sugerem alguns que as leis, tutelando essas “novas” instituições (p.ex., parcerias homossexuais, casamentos grupais etc.), promovam sua equiparação à família estadeada no matrimônio monogâmico; porque há, de fato, perpetrações de aborto, sustenta-se que devam essas práticas despenalizar-se ou até juridicizar-se — essa metódica do "fato consumado" manifesta um hiperfactualismo jurídico, marginado de referência valorativa (salvo, talvez, quanto a estimar serem os fatos a mesma coisa, ou quase, que os valores).

Além disso, enquanto norma, compreendida ela no sentido de uma assinalação de caminhos e critérios, ut in pluribus, aptificados a realizar a res iusta, o Direito (positivo) demanda efetividade, ex consequenti de seu múnus de causa eficiente do justo; trata-se, pois, de uma eficácia que se reconhece de maneira secundária, supeditada à consecução do Direito objectivo (ou seja, do Direito como justo).

Cabe, entretanto, ainda no âmbito do Direito normativo, ampliar a perspectiva da relevância da efetividade jurídica. É que o Direito positivo tem por fim o bem comum, que não se inclina somente à realização do justo em concreto, senão que, não o perdendo de vista embora, tende ainda à segurança jurídica. Quando, portanto, as leis se revelam ineficazes, não só se adverte um risco para a consumação do ato justo, mas também o perigo de turbar-se, objetivamente, a segurança e, subjetivamente, a certeza do Direito.

À margem de discutir, neste ponto, se a coactividade é elemento constitutivo do Direito ou uma sua propriedade concomitante, como preferia CATHREIN, é certo que a eficácia jurídica, se não decorre de uma voluntária conformação social (: consensus populi, diz HERVADA), há de emanar de uma ação subsidiária da autoridade. Sem ambas essas ações, o Direito, ainda que geneticamente formado e nascido, é como que natimorto, não se vitaliza no plano existencial. A lei, a expressão é de CARBONNIER, faz-se “letra morta”.

Por que, cabe perguntar, com a linguagem de que se valeu um político de nossos tempos, há leis que “pegam” e leis que não “pegam”? Desde logo, pode haver normas cuja função seja, propositada e limitadamente, simbólica; apenas um direito mágico que, na observação de DELMAS-MARTY, é um sucedâneo laico das práticas religiosas de exorcismo. Não faz muitos anos, como se sabe, em face do elevado índice de crimes violentos contra o patrimônio, decidiu-se, no Brasil, pela criminalização da posse indevida de armas de fogo (que, anteriormente, configurava mera infração contravencional); o discurso político inclinava a supor que, proibida a possessão irregular de armas, logo cessariam ou, ao menos, muito se reduziriam os crimes daquele gênero; houve sinais de que se mitigara, isto sim, a sensação de insegurança pública, mas os dados oficiais indicaram, opostamente, uma realidade exterior de aumento da delinqüência violenta contra o patrimônio. A eficácia da lei fora só aparente, derivada de uma tarefa simbólica: exorcizara fantasmas interiores, mas não invadira o mundo real.

Em um ambiente carregado de leis, algumas há que não se aplicam por uma resistência social derivada:

a) da ignorância ou perda de memória das normas;

b) do rechaço de leis que se oponham a usos e concepções arraigados em seus destinatários (quando não moldadas às tradições do povo, mas “produtos abstratos da razão”, as instituições, disse TOBIAS BARRETO, “não agüentam por muito tempo a prova da experiência e vão logo quebrar-se contra os fatos”);

c) do desprestígio da autoridade —que leva já à expectativa de ineficiência;

d) da falta de meios cômodos para a observância normativa.

Outras leis deixam de aplicar-se pela tolerância da autoridade, reflexo de uma inclinação à condescendência, bem registrada por MANZINI. Essa tolerância de fato —que desprestigia a autoridade— leva ao risco, sobretudo quando considerada a polarização dos órgãos de efetivação normativa, de que, preservada uma reserva de vigência da lei, a esta se recorra, subitaneamente, com seletividade ideológica e política.

Há abortos e muitos. Há também roubos e muitos mais do que são os abortamentos. E alguns dos que roubam se lesionam e, acaso, morrem em suas ações facinorosas.

Se é caso de, segundo sustentam os teóricos e difusores do abortismo, por haver muitos abortos diretos, revogar a lei que os tipica delitualmente, pois, por maioria de razão (sendo maior o número das subtrações com violência ou grave ameaça contra a pessoa), que se revoguem as leis que punem os roubos.

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