Blogia
logos

O ABORTO DIRETO E SEU FUNDAMENTO JURÍDICO PSEUDO-SOCIAL

Há, na essência do ser humano, uma propriedade, reconhecida já por Aristóteles, em célebre sentença: “o homem é, por natureza, um animal social (politikón zôion)” (Política, Bkk. 1.253a). Noutra parte escreveu o mesmo Aristóteles: “… o homem é um ser social e disposto por natureza a viver com outros” (Ética a Nicómaco, Bkk. 1.169b). Alguns preferem, ao traduzir esses textos aristotélicos, substituir as expressões “animal social” e “ser social”, respectivamente, por “animal político” e “ser político” (: que vive na pólis, na cidade), ou ainda por “animal cívico” e “ser cívico”. Como quer que seja, sociabilidade, politicidade, civilidade, trata-se de um próprio específico do homem, um atributo de todos os indivíduos da espécie humana, enquanto participam dessa espécie: insere-se na natureza do homem (i.e., concerne à ordem da atividade ou dinâmica, daquilo que o homem é capaz ou não de fazer), mas não se confunde com a essência humana; haveria grave erro em pensar que o homem se definiria por sua sociabilidade, por seu relacionamento social.

Sociabilidade é um conceito logicamente abstrato que se aplica —ou concretiza— no socius (associado, sócio) e na societas (sociedade, grupo, comunidade, cidade, aliança), importando numa relacionação entre pessoas ordenadas a um fim comum (fim social). Para alcançar esse fim comum de vários homens, é indispensável a coexistência do direito:

a) porque, o homem, cuja natureza é racional, ao tender à própria felicidade, não pode menos do que buscar o que é justo (: o direito objetivo, o objeto do direito); admitir o contrário —que os homens pudessem inclinar-se, propositadamente, ao injusto (: sob razão de injusto)— levaria ao absurdo de concluir que a felicidade ou perfeição humana estaria nas injúrias, nos furtos, nas lesões provocadas por uns contra outros dos consócios;

b) porque a natureza não indica tudo o que convém à coexistência social concreta: se algumas coisas se revelam intrinsecamente morais (para o caso, justas) ou imorais (aqui, injustas), outras há que reclamam uma determinação humana;

c) porque a natureza das coisas intima a relevância de certos bens (p.ex., a vida, a honra, a liberdade), impondo o conseguinte débito moral de seu respeito; mas, sendo os homens, em seu estado presente, inclinados a erros da inteligência e a perversões da vontade, convém reforçar, juridicamente, as conseqüências morais da violação daqueles bens (que dão conteúdo a certas pretensões, designáveis como “direitos subjetivos”);

d) porque, enfim, ainda supondo, em contrário da realidade das coisas, que os homens fossem impecáveis, a consecução de um fim comum, na sociedade, exigiria a coordenação dos meios para atingi-lo, e essa coordenação, exercitada pelas várias autoridades sociais, tem por causa eficiente a regulação jurídica.

Impende, no entanto, observar que a sociedade política não é a única sociedade em que vivem os homens. Com efeito, participam eles de diferentes grupos sociais (família, comunidade vicinal, clubes, associações filantrópicas, grémios profissionais, universidades, Igreja etc.), e em cada um desses corpos intermédios entre o indivíduo e a autoridade sócio-política (que, em nosso tempo, constitui o Estado) há uma regulação jurídica, ou seja: um direito positivo próprio. A essa pluralidade de ordens jurídicas acrescenta-se, ainda, o conjunto de outras ordenações normativas (v.g., as regras de cortesia), de sorte que não só da autoridade política provém o direito posto numa dada sociedade, nem apenas do direito estatal emana a ordenação societária (ter-se-ia, em acréscimo, de pensar no múnus do amor para a solidariedade social). Além de tudo isso, pecularidades temporais e localizadas podem sugerir a conveniência, em certas sociedades, de normas que não se justificam ou não convêm a outras. Célebre, a esse propósito, é a lição de S.Isidoro de Sevilha, nas Etimologias, ensinando que a lei humana deve ser honesta, justa, possível, mas, em acréscimo, “conforme aos costumes pátrios, conveniente ao lugar e ao tempo, necessária, útil…” (secundum patriae consuetudinem, loco tamporique conveniens, necessaria, utilis).

Não são todas as ações do homem —lato sensu— que autorizam regulação pelo direito. Já quanto, propriamente, aos atos do homem, praticados sem deliberação ou voluntariedade, mostra-se, à evidência, que não caberia uma disciplina jurídica para observância de loucos, de crianças recém-nascidas ou de sonâmbulos. Não diversamente, quanto aos atos humanos —que, livres, procedem da vontade esclarecida pela inteligência—, muitos há que, por não atentarem contra o bem comum, afastam a conveniência da regulação jurídica; outros —de que dão forte exemplo o amor humano e a virtude da fé—, não são suscetíveis de impor-se pela autoridade. A indispensabilidade do direito para a vida social, pois, não é justificativa para o panjuridicismo —que difundiria a normatividade jurídica para além dos limites de um direito possível, necessário e útil.

S.Tomás de Aquino discutiu a questão de saber “se à lei humana pertence coibir todos os vícios” (S.Th., Ia.-IIæ., 96, 2). Ainda antes de enunciar a solução aprofundada desse problema, S. Tomás, depois de invocar uma passagem de S.Agostinho, afirmou brevemente: “…a lei humana permite, retamente (recte), certos vícios”. Adiante, rematou: “… a lei humana é feita para a multidão dos homens, composta, em sua maior parte, de homens de virtude imperfeita. Por isso, ela não proíbe todos os vícios, de que se abstêm os virtuosos, mas apenas os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se. E principalmente os que causam dano a outrem, ou aqueles sem cuja proibição a sociedade humana não pode subsistir; assim, a lei humana proíbe o homicídio, o furto e atos semelhantes”.

Dependente da prudência legislativa —ou legisprudência—, a singular regulação jurídica de cada sociedade, ou de uma dada sociedade ao largo de sua história, pode apresentar e, de fato, vem manifestando variações, que não permitem, mais do que em certa medida, um catálogo universal e apriorístico de normas. Seria, em todo caso, impossível uma lista petrificada de “direitos” para abranger a realidade polifacética da vida: a coisa justa concretiza-se de facto, e as leis só podem sinalizar caminhos para a encontrar.

Pode ocorrer, entretanto, que legislações instituam “direitos pseudo-sociais”:

(a) am alguns casos, tratar-se-á apenas de uma situação de fato, de sorte que a expressão “direitos pseudo-sociais” equivaleria, enfim, a “direitos não-jurídicos”; nesse quadro, haveria uma injuricidade intrínseca do “direito” positivo, que se revelaria prontamente não como lei mas como corrupção dela (legis corruptio): p.ex., o decreto de homicídio massivo de crianças editado por Herodes (S.Mateus, 2-15-18); o antigo costume dos esquimós em oferecer meninas recém-nascidas como alimentos a cães; os massacres eugenésicos; as práticas antropofágicas dos indígenas;

(b) em outros casos, desvelam-se direitos pseudo-sociais secundum quid: assim, quando se importam, ao desamparo da conveniência, instituições alienígenas, de si mesmas não-adversas, em abstrato, à ordem moral, mas que se revelam contrárias à tradição, conformada à moral, da sociedade em que se intrusam essas instituições alheias: v.g., porque a forma de governo republicana se adotou em França, pensaram alguns que havia de impor-se noutros países, retamente governados por monarquias; porque os norte-americanos reuniram seus “estados”, o Brasil converteu-se de Estado simples em Estado composto, reunindo, como se disse, coisas já antes reunidas;

(c) em algumas ocasiões, há leis destinadas a pretensões ultra-sociais: p.ex., uma norma constitucional que preveja, expressis verbis, ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”, não pode, à evidência, garantir símile “direito” extensível a enfermos medicamente incuráveis; coisa diversa seria que se tratasse de referir à concorrência do Estado em prevenir e remediar as doenças; mas se essa norma, com aquele primeiro sentido, se revelaria impossível absolutamente, não menos ultra-social, relativamente, avultaria, ao cabo de algum tempo, a regra que previsse a gratuita internação hospitalar de não importa qual número de doentes, sem estabelecer a mínima correspondência com o custeio do tratamento; uma ilustração dessa ultra-socialidade normativa, com cariz econômico, pode encontrar-se na previsão constitucional que, no Brasil, cifrava em 12% a taxa máxima de juros anuais relativos a concessões de crédito (no limite, a observar-se a norma, desapareceriam as concessões de crédito…); a possibilidade da lei, como a referiu S.Isidoro, é, exigivelmente, tanto a absoluta, quanto a relativa;

(d) há omissões nas leis que, dotando-se, sem embargo, de algum papel jurídico, terminam por tutelar situações contra-sociais: assim, ao proteger uma ampla liberdade de expressão pelos meios de comunicação de massa, omitindo toda sorte de censura, a lei permite, frequentemente, o pleno trânsito de injúrias, contra as quais, quando muito, só tardiamente se obtém (alguma) reparação; ao tutelar a liberdade de ir, ficar, vir, permanecer e ficar, o legislador, abdicando de punir o trottoir e omitindo normas de seu controle, pune, de fato, inversamente, as honnêtes gens que, em certas horas, não podem sair de suas casas, nem convenientemente receber visitas, diante da impudica ostentação pública de pessoas que se prostituem, sexualmente, de todo género;

(e) por fim, há direitos pseudo-sociais por efração de hierarquia: um exemplo disso é afirmar o direito de liberdade de uma pessoa (até aqui corretamente) mas como via autorizadora, fora do estado de necessidade ou da legítima defesa, para a prática de homicídios (assim, várias hipóteses de impunidade na perpetração de aborto), sacrificando um bem maior (a vida de um inocente) em prol de outro menor (bem pessoal de liberdade).

Saber onde se fronteirizam os direitos sociais minimamente exigíveis e os que o deixam de o ser não tem resposta fácil e, muita vez, depende do grau de desenvolvimento das sociedades. Mas, certamente, o homicídio de inocentes, a pretexto de não importa qual interesse social, não é direito, é injustiça.


0 comentarios