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Breve aproximação ao conceito de Direito Natural

Breve aproximação ao conceito de Direito Natural

Parte não pequena do problema definitório do direito natural encontra-se de logo posta na esfera da pluralidade de suas acepções: o termo direito natural é analógico, aliás duplamente, porque tanto é análogo o termo direito, quanto o é o conceito de natureza, substantivo este a que referível o predicado natural. Quanto ao termo direito, núcleo sintático da expressão “direito natural”, prepondera o caráter da analogia extrínseca de atribuição (para a retórica: metonímia), embora possam ainda, em acréscimo, identificar-se, quanto ao mesmo termo, (a) uma analogia intrínseca, p.ex. na aproximação relativa entre direitos estaduais e não-estaduais, e (b) uma analogia metafórica —a “metáfora geométrica” a que se referiu Bigotte Chorão: do direito como oposição a esquerdo ou antônimo de torto advém a figura, transposta para o campo ético, da “rectidão da conduta aferida por determinada pauta normativa ou certo critério axiológico”.

Pelo termo “direito” designam-se vários predicáveis unidos mediante relações causais, tal que um dos conceitos (analogado principal) é o fundamento real e verbal —vale dizer, conotativo e de designação— dos demais correspondentes termos análogos (analogados secundários). Em outras palavras, o problema conceitual de que se cuida não pode limitar-se a referir as acepções possíveis do termo “direito”, mas exige, além disso, que se aponte o prius analógico (o analogado principal), sobre cujo numen cabe fundar a justificativa do nomen dos analogados secundários. A questão, pois, transporta-se para uma prévia relacionação de conteúdos (conceitos objetivos), só depois refletindo-se na esfera nominal.

A indagação que cabe, portanto, metodicamente, concerne ao primado de um entre vários conceitos objetivos analógicos. Trata-se, enfim, de distinguir, entre conceitos, em parte símiles e em parte distintos, a primazia ontológica que, com reflexo na hierarquização das noções análogas, justifique a equivalência das expressões verbais.

Ex hypothese, o primado analógico de “direito” pode situar-se:

a) NA NORMA

A hipotética primazia ontológica do direito na norma está a indicar, no uso verbal preferente, a norma escrita, i.e., a lei. Daí que, nesse quadro, possa falar-se indistintamente de normativismo e legalismo. Essa preferência de uso não impede, contudo, ainda que de modo secundário, o hipotético estabelecimento desse primado numa outra espécie de norma, não-escrita, a costumeira, sem embargo de que, talvez, essa primazia então melhor pudesse classificar-se no âmbito do primado do fato social. Há nisso (e ainda noutros casos) uma imbricação de espécies que não permite aqui uma solução cômoda.

A despeito da variedade de suas teses, podem, entretanto, reconhecer-se, sob a etiqueta do normativismo, diferentes autores e sistemas que cifram na lei (recte: na norma) a primazia do termo (e objeto do conceito) “direito”. De logo, seria assinalável o normativismo legalista-formalista (avultadamente, Kelsen, mas também Kant, cuja influência no pensamento jurídico moderno e contemporâneo não pode ser ignorada): indiferente ao conteúdo substancial das normas, pode essa corrente considerar-se o normativismo por antonomásia. Mas há outras formulações normativistas: o legalismo de cariz material, identificável, p.ex., no movimento codificador; o positivismo religioso, centrando na Revelação (ou, com rigor, em mais de uma apontável revelação) o antecedente para a extração discursiva do direito (assim, entre os babilônios, os hebreus, os árabes e até em algumas correntes cristãs); o normativismo universal consensualista, a exigir uma Declaração mundial de Direitos (p.ex. a da ONU) como lei escrita indispensável a “direitos naturais” (= faculdades naturais de agir).

Em todas essas correntes, o direito é, primeiramente, a norma, vale dizer que todos as demais possíveis acepções analógicas de “direito”, demandam referência fundacional a esse suposto prius analógico. Inclusivamente a idéia de um direito como justo. Desse modo, justo será o que se conforma a uma norma previamente estabelecida pela vontade de Deus (positivismos religiosos) ou do homem (inclusa a concertada universalmente). A norma já não seria a medida da conduta, a medida do justo, senão que a criadora do justo (mais ainda: a fonte da moralidade).

Poderia aventurar-se que a vontade, enquanto apetite racional, exigiria deliberação, com que retrocedida a criação normativa ao plano do entendimento. Mas, nesse caso, a norma teria de referir-se a realidades anteriores: (a) internas ao próprio sujeito cognoscente, ou (b) externas. Com isso, efetivamente, despontam algumas implicitações que redundam na negação, em rigor, do normativismo: poderia falar-se, como há muito advertira Galvão de Sousa, que símiles normativismos negam por palavras o que implicitam no pensamento. Mas o que se agudiza é o fato de esses “implícitos jusnaturalismos” (ou criptos-jusnaturalismos, na expressão de González Vicen) configurarem pseudos-jusnaturalismos (referiu-o Vallet de Goytisolo).

As referências fundacionais do direito à realidade interna do sujeito cognoscente (imanência, interiorização, subjetivização, intuição) são muito propícias ao gnosticismo. Poderia mesmo falar-se, segmentadamente, num gnosticismo jurídico, que descobre normas “jurídicas” no plano imanente de identidade entre o mundo, o homem e Deus: tudo conflui num todo, de sorte que a experiência interna do homem é já experiência cósmica e experiência mística. A consciência humana é autoconsciência do todo —ou, mais ao dia, autoconsciência de Gaia (mito de James Lovelock). As normas que assim se inventam não são, em verdade, jurídicas, porque não dizem com ações livres, mas normas de autocontrole holístico (derradeiramente, ecológico, próprias da Terra, ou Gaia, como hiper-organismo vivo em que se dissolvem, como partículas, os homens e suas relações).

b) NO FATO SOCIAL

Variadas correntes —e cabe insistir em sua imbricação noutros critérios divisórios— firmam a idéia de “direito” na principalidade de um dado fato social: o acontecer histórico (Hegel), a cultura, as forças econômicas (Marx-Engels), a jurisprudência dos Tribunais (John Austin, Kantorowicz), a raça (Gobineau, Chamberlain, Darwin), o território, a linguagem, a religião etc.

Justo, de conseguinte, é o que deriva de um fato histórico ou cultural, econômico, judiciário ou étnico etc., etc. Tem-se ao fundo o justo como o simples consectário de um fato. Assim, estariam suficientemente “justificados” os totalitarismos.

c) NA CIÊNCIA

Por certo, quando Ulpiano conceituou o “direito”, ciência do justo e do injusto, o objeto formal do saber despontara como nuclear; ciência, nessa sentença justiniana, parece melhor equivaler a conhecimento prático. A tanto, concorre outra sua conhecida conceituação: Iuris preacepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (Os princípios do direito são estes: viver honestamente, não fazer dano a outrem, dar a cada um o que é seu). Da mesma sorte, no célebre juízo de Celso —ius est ars boni et aequi (o direito é a arte do bom e do justo)—, a palavra arte não tem o sentido de poiësis (técnica), nem apresenta o caráter principal na expressão, que avulta com a referência ao boni et aequi.

Há quem vislumbre nessas indicações —e também na propensão dos mestres do Direito em cumprir o escopo de transmitir, às gerações sucessivas, a doutrina jurídica (p.ex., Franco Montoro) — a afirmação de a ciência ser o conceito primaz na analogia do “direito”. Uma compreensão desses textos que, entretanto, não se margine do contexto em que proferidos concluirá, diversamente, em que, neles, a acentuação primacial está no objeto da ciência e da arte, não designadamente nesses saberes.

Todavia, ao sustentar Oliver Holmes que o direito é “a previsão do que decidirão os tribunais”, esse autor, voltado à prognose judiciária, aparenta, de fato, conceder à ciência (ou a algo dela) o primado na analogia de “direito”. É que, diversamente do que se passa com Ulpiano e Celso —ambos a referir ciência e arte ao justo e injusto, ao bom e ao justo—, Holmes reporta-se a um fato futuro (=decisões dos tribunais), a cujo conteúdo não precede nenhuma indicação valorativa. Direito, pois, é prognosticar o resultado de um jogo, seja ele(suponha-se possível aferi-lo) justo ou injusto, bom ou mau (o que, ao fundo, não importa).

d) NA FACULDADE DE AGIR

Um número considerável de juristas, muita vez de modo implícito, centra o “direito” na faculdade de agir. Assim, de maneira freqüente, lê-se que o “direito” está fundado nos “direitos humanos”, vale dizer, em faculdades de agir e garantias constituídas, de algum modo, pela personalidade humana. Além disso, podem encontrar-se sinais dessa nuclearidade dos direitos subjetivos em correntes que, por outros critérios, se assinalaram já como expressões de positivismo (p.ex., Kant, ao afirmar que o direito é, em resumo, liberdade); também nas variegadas linhas personalistas, assentadas numa certa equivalência entre natureza humana e liberdade. Algumas vezes, miscigenam-se as fundações: o “direito” seria capitalmente o direito humano, simultaneamente enquanto previsto em alguma Declaração universal ou na Constituição política.

e) NA COISA JUSTA

Para o jusnaturalismo tradicional, o direito (por isso mesmo designado “direito objetivo”) é a coisa justa, em concreto, assim entendida uma realidade humana singular, exterior ao sujeito cognoscente (=mediedade real), relativa a outrem (=alteridade) a que é devida segundo certa proporção (=reta razão). Realidade operável, o direito ou coisa justa não é a ação humana (actio), mas, isto um, um ato humano terminativo concreto (actum), o ato ou obra resultante da ação. Trata-se, além disso, de um actum devido a outrem: a res justa é o ato que corresponde ao suum, ao débito referente a outrem. Por se cuidar de uma dívida social —vale por dizer, da relação social humana—, esse débito não pode ser menos do que o imposto segundo a reta razão, cujo objeto próprio é o ser e a verdade (=realismo ontológico). Tratando-se, porém, de um singular operável, a coisa justa não se descobre in genere et in abstracto, senão que prudencialmente, hic et nunc.

Há, pois, um direito natural objetivo (=coisa justa), que, objeto indispensável da experiência fenomenológica (pondo-se o caso como um prius metódico), deve referir-se, não menos indeclinavelmente, a certos princípios —os que norteiam a razão prática, em que radica a prudência. Esses princípios, universais embora, não são inatos, extraindo-se da realidade (=natureza das coisas, inclusiva da realidade interna dos homens) e resumindo-se, para o plano jurídico, nesta enunciação: “fazer o bem devido a outrem; evitar o mal, nocivo a outrem”. Esse primeiro princípio não comporta exceção e é universalmente apreensível. As conclusões próximas que dele se inferem são, de comum (ut in pluribus), extraídas por todos, mas não necessariamente. Desde logo, por aí se revela a conveniência da elaboração de leis, concluídas da natureza das coisas: fala-se, então, em leis naturais, dentre elas o direito natural positivo (= lei natural social). Mas exatamente porque cifrado a umas poucas conclusões inferidas do primeiro princípio da razão prática, o direito natural positivo não pode exaustar as exigências da vida jurídica em concreto: dá-se então a conveniência de instituir outras leis que, não sendo conclusivas daquele primeiro princípio, são determinativas (direito humano positivo)—na medida em que se subordinam, de todo modo, àquele princípio e ao direito natural positivo.

Sem embargo, todas essas leis —naturais e humanas— não podem exaurir a situação dos casos. As leis sinalizam critérios, caminhos que, de comum, uma vez adotados, levam à realização da coisa justa. Mas ainda cabe, indispensavelmente, considerar as circunstâncias concretas, o que á tarefa própria da prudência. A lei não é o direito; apenas auxilia-lhe a invenção.

Ao lado do direito natural objetivo (res justa) e do direito natural normativo (leis naturais), pode ainda falar-se em direito natural subjetivo (faculdade natural de agir: p.ex., o direito de educar a própria família). Por certo, não cabe às Constituições políticas, nem as Declarações universais criar direitos naturais; podem, sim, e acaso devem, isto sim, reconhecer direitos instituídos com anterioridade e que se acham gravados na natureza humana —ou intimados aos homens.

Também pode falar-se em ciência do direito natural e em direito natural enquanto fato social, num e noutro caso subsidiários do conceito central de res justa.

(No alto da postagem reprodução de pintura -"O Triunfo de S.Tomás de Aquino", de Benozo Gozzoli-, que estampa Tomás a ensinar Platão e Aristóteles).

2 comentarios

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