Blogia
logos

PARA NÃO DIZEREM QUE NÃO PENSEI NAS TARTARUGAS...

PARA NÃO DIZEREM QUE NÃO PENSEI NAS TARTARUGAS...

1. Vigora no Brasil, a propósito do Direito Penal Ambiental, a Lei 9.605/98, de 12-2, normativa que —segundo a indicação oficial— “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente…”. Essa Lei, publicada no DJU de 13-2-98, foi retificada conforme publicação de 17-2-98. Regulamentou-se, em observância da norma contida em seu art. 80, pelo Decreto 3.179/99, de 21-9. Entre nós, hoje, é da competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição” (art. 24, item VI, CF/88) e acerca da “responsabilidade por dano ao meio ambiente…” (art. 24, item VIII, CF/88).


O Brasil internalizou em sua ordem jurídica[i] a Convenção Americana sobre Direitos Humanos —Pacto de San José—, à qual Convenção se juntou um protocolo adicional —Protocolo de San Salvador —sobre direitos econômicos, sociais e culturais. No art. 11 desse Protocolo versa-se sobre o “direito a um meio ambiente sadio”, prevendo-se, então:


· “Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos” (item 1)

· “Os Estados Partes promoverão a proteção preservação e melhoramento do meio ambiente” (item 2).

2. A CF/88 prevê, em seu art. 5o, item LXXIII, que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural…”.


O conceito de meio ambiente —em palavras de Rodriguez Devesa— dista muito de ser inequívoco[ii]. Era expressão já era empregada faz tempo na criminologia (ambiente, meio ambiente, meio circundante, realidade circundante). Mais recentemente o termo passou a compreender:


· os meios ambientais: solo, água, atmosfera, ausência de ruídos perturbadores

· os fatores ambientais, tanto inanimados (p.ex. os climáticos: temperatura, umidade), quanto os animados ou bióticos (animais, plantas e seres vivos microscópicos)

· o ecossistema: conjunto dos diversos processos de transformação da matéria, suas reservas energéticas e seus numerosos subsistemas.

Triffterer[iii] indica os fins seguintes para a política de proteção do meio ambiente:

 

· evitar ou reduzir os danos causados por substâncias tóxicas, sobretudo as radioativas, as químicas e as bioácidas

         · manter a limpeza das águas

         · evitar os ruídos e vibrações

         · conservar e preservar a paisagem e a natureza.


3. Na sessão de 15 de outubro de 1978, em Bruxelas, a UNESCO —Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura—, considerando expressamente que “cada animal tem direitos”, proclamou a Declaração dos Direitos dos Animais. Entre outros desses “direitos” relacionou o direito à existência animal (art. 1o), o de o animal ser respeitado (art. 2o-1), o direito que tem ele à atenção, aos cuidados e proteção do homem (art. 2o-3), o de ele viver livremente em seu ambiente natural e o de ele reproduzir-se (art. 4o-1), o “de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprios da sua espécie” (art. 5o-1). Por fim, a UNESCO prescreveu: “Os direitos dos animais devem ser defendidos pela lei como os direitos dos homens” (art. 14-2).


A atribuição de direitos —i.e., o que agora se designa como “direitos subjetivos”— entendeu-se sempre como um conseqüente lógico da existência social do homem. Não só, entretanto, cabe a sintética expressão ubi societas, ibi ius (onde está a sociedade, aí se encontra o direito), mas igualmente dizer ubi ius, ubi societas. É verdade que esses brocardos mais estariam a apontar, o primeiro, para a exigência da autoridade em todos os grupos sociais, e o segundo, à alteridade (o exemplo freqüente é o de inexistência do direito na ilha em que vivia, sozinho, Robinson Crusoe). Mas há algo em acréscimo a extrair desses aforismos: a reciprocidade de sentidos dos termos da relação —sociedade e direito, direito e sociedade— salienta que ambos só podem necessariamente con-viver.

Essa convivência no mundo real não significa, todavia, que não haja um prius lógico no relacionamento entre sociedade e direito. Pode afirmar-se, em contrário, que o direito existe para realizar o fim social, de sorte que se assinala o primado lógico da sociedade. Esta, contudo, é uma relação real de homens —indivíduos e sociedades menores—, ordenados a um fim comum. Daí que, com precedência lógica à sociedade, surja ainda o prius humano. Compreende-se, pois, que o direito se refira a um dado humano primeiro —a personalidade do homem (que não é só relacional)—, bem como que ele se destine a propiciar a realização dos fins dos homens. No direito romano, consolidou-se, a propósito, a regra hominum causa omne ius constitutum est (todo direito é constituído para os homens).


Nem sempre se atribuíram direitos a todas as pessoas: o conceito de persona, entre os romanos, à certa altura, p.ex., incluía os escravos, e estes não possuíam direitos, que se reconheciam apenas aos romanos livres; desse modo, os direitos eram atribuídos segundo um status (sumariamente: o da condição livre e romana da pessoa), mas essa situação jurídica (a do caput liberum) sempre demandava o primado da persona, cuja noção antecede ao direito. Pessoa é o suposto racional, ou, mais explicativamente, em palavras de Boécio, é a substância individual de natureza racional.


Disso resulta que a idéia de direito sempre se haja relacionado a um suposto de natureza racional. O direito, pois, compreendeu-se como realidade (e saber) antropológico e subalterno da ética, tendo por objeto a conduta livre do homem. Dessa propriedade —a de o homem agir livremente— derivam sua responsabilidade e sua imputabilidade. Essas idéias firmaram-se universalmente no pensamento jurídico, sem embargo de que se registrem, ao largo da história, algumas exceções: inter alia, a) aplicação de penas a mortos (o que adversa a afirmação de princípio, segundo a qual, com a morte, cessa a personalidade jurídica): v.g., data do séc. IX a primeira notícia de um processo formalmente instaurado contra um morto, o Papa Formoso, que foi, então, condenado por perjúrio e punido com o corte de um dedo (ou de toda mão direita), a supressão do traje pontifical e a privação de sepultura; b) inflição de penas em efígie: p.ex., em 1648, uma figura do chanceler Korfitts Ulfedt foi legalmente esquartejada em Koppenhagen; c) julgamento e possível condenação de entes sem vida: assim, na Grécia antiga, reconheciam-se coisas culpáveis de lesões a seres humanos; eram elas levadas a julgamento no Pritâneo; d) punição de animais: uma ilustração contemporânea encontra-se com a pena de morte imposta, durante a sobre-revolução francesa, a um cachorro, acusado e condenado por uma cumplicidade contra-revolucionária[iv]. Na concepção primitiva do direito romano, as Doze Tábuas previam, entre os delitos, a pauperies, consistente em danos provocados por animais atuando contra o que era conforme a sua espécie (Mommsen). Na evolução do direito romano, julga-se, em regra, que os animais selvagens e os que recuperem sua liberdade são coisas abandonadas (res nullius).

O fato de o direito e, antes dele, a ética relacionarem-se nuclearmente com a personalidade do homem não leva à necessidade de neles reconhecer-se um homocentrismo ou antropocentrismo, se se pode admitir, como ocorre com a legítima Ética cristã, um modo transcendente de considerar a pessoa humana e sua atividade, ordenadas a um fim sobrenatural.


Alguns autores contemporâneos (entre outros: Charles Stone, Peter Singer, Paola Cavallieri, Jesús Mosterín, Jorge Riechmann, Fernández Buey), em cujo pensamento, com freqüência, se encontra uma inspiração básica na hipótese evolucionista, têm firmado o eixo de uma nova “ética” na escala zoológica (ética zoocêntrica) ou mesmo abrangendo todas as formas de vida(ética biocêntrica). Desse modo, o reino moral passa a integrar-se de todos os animais (concepção mais ampla), ao menos dos hominídeos (chimpanzés, gorilas e orangotangos), quando não, de toda a comunidade dos entes da biosfera (o que se designou como “comunidade biótica”). A tônica desse novo modelo ético e jurídico está em que os direitos devam atribuir-se a todas as espécies suscetíveis de receber benefícios e suportar prejuízos. De sorte que já não haveria falar em personalidade, mas em utilidade ou referencial de benefícios-danos. Propiciada, em certa medida, por crises ecológicas (locais, regionais e planetárias) —maxime por diversas catástrofes (p.ex., Chernobyl)—, essa nova ética guarda estreita correspondência com vários movimentos ecologistas e já se apodou de utopia verde.


São conhecidos os muitos episódios literários de antropomorfização, prevalecentemente de animais. Todavia, alguns vegetais também falam, p.ex., a flor do planeta do petit prince de Saint-Exupéry; e até mesmo cartas de copas, na Alice… de Lewis Carroll. Mas predominam, na literatura, os animais que se antropomorfizam: difundem-se eles, v.g., ao largo das fábulas de Esopo, dos contos de Grimm (o rei sapo, os músicos da cidade de Bremen, os sete cabritinhos, o lobo do Chapeuzinho Vermelho etc.), nas admiráveis Crônicas de Nárnia de C. S. Lewis e nas Camperas de Leonardo Castellani, fazem a festa do Felix de las Maravillas de Ramón Llull, acham-se no Animal Farm de Orwell. Ilustrativo, em resumo, é o episódio genésico, em que a serpente, encarnando o demônio, seduz Eva a cometer o primeiro pecado. Esse antropomorfismo dos animais é, entretanto, preferentemente de cariz simbólico, não se aparentando com o animalismo ético e jurídico de nossos tempos; de modo diverso e menos freqüente, no soneto A Árvore da Serra, Augusto dos Anjos faz compartir a alma humana singular com um ente do mundo vegetal: “Deus pôs alma nos cedros… Esta árvore tem minh’alma”.


Não parece demasiada, em todo caso, a referência a um possível fato precursor do atual animalismo: na Alemanha, indo em curso a Segunda Guerra Mundial, espalharam-se cartazes, com imagens de vários animais erguendo as patas direitas, numa típica saudação nazista (em aparente resposta à saudação de Herman Göring, ali retratado). Lia-se nesses cartazes: Vivisektion ist verboten (a vivisecção está proibida). Vale dizer, que se vedavam as experimentações com animais (não, porém, com seres humanos!). Nisso alguns encontram um sinal da inclinação do nacional-socialismo germânico ao amplo movimento ecologista, ocupado da “raça pura”, da “higiene”, do “sadio sentimento” (cfr. www.cristiandad.org/nazis_animal.htm).


Podem esquematizar-se as concepções suscetíveis de adversar na matéria sob exame:

® o sujeito de direito é o homem, considerado de modo transcendente: assim, a concepção ético-cristã genuína centra o reconhecimento do direito (= res iusta, sobretudo), proximamente, na pessoa humana, com sua natureza social (pessoa que, e enquanto, se relaciona com todo o universo criado e com Deus); mas, concepção finalista, a legítima Ética cristã afirma a natureza teotrópica do homem (= dirigido a Deus, fim último, em certa medida, natural, mas cuja visão é fim sobrenatural) e, de conseguinte, estabelece, ao fundo, um teocentrismo jurídico (= o homem é o centro próximo do direito, enquanto imago Dei —imagem de Deus); o homem, nos atos propriamente humanos, age com liberdade interna, ordenado embora a fins intermédios (que conhece e aos quais pode alcançar), dirigindo-se a Deus, a quem é vocacionado, seu único fim último;

® o sujeito de direito é o homem, considerado de modo imanente: nessa linha, diversas correntes naturalistas (Protágoras, Renascimento, Iluminismo) centram os direitos (subjetivos) na pessoa humana (freqüentemente estimada em abstrato: o Homem, não os homens em concreto), sem referi-lo a uma realidade superior; em todo caso, seria possível, de algum modo, supor a persistência de uma racionalidade a que orientar a ordem moral;

® o sujeito de direito é o animal (incluso o homem): o animalismo ético estabelece a orientação moral (?) per modum naturae, sem possível referência à racionalidade (salvo se afirmada ela, contra a evidência científica, também em escala zoológica); trata-se de uma “ética” antifinalista: os animais, com efeito, atuam por necessidade natural (“por instinto”), sem conhecer a relação entre meios e fins; desaparece o constitutivo formal de fim (=que ‘o bem, enquanto conhecido); que regras de conduta seriam encontráveis abandonada toda possível ordenação a um fim último? Só lhe restaria a evasiva do determinismo (= fim imposto desde o exterior); nessa hipótese, porém, que sentido teria já uma ética de atos definidamente não-livres? Vê-se que, ao fundo, chega-se aí a uma negação da ética;

® o sujeito de direito é um ente vivo (incluído o homem), enquanto vivo: todo o cosmos se teria reduzido, nessa concepção, a ser, embora na medida em que dotado de um princípio vital, agente executivo simpliciter de fins impostos do exterior (a exemplo do que já também se indicou como alternativa determinista);

® o sujeito de direito é um ente (incluso o homem), enquanto ente: pode entender-se que, de uma concepção filosófico-cristã, para a qual caberia considerar, como realidade e objeto do pensamento, a tríade mundo-homem-Deus, passou-se a uma vertente antropocêntrica, para a qual tudo se exaure (ou se mede) com o homem, e, derradeiramente, a uma radical concepção ecologista, em que tudo se exausta no mundo.

Não pode surpreender que, diante de símile ecolatria (inclusiva de uma vertente panteísta), surjam, mais ou menos influídos do animalismo ético, movimentos expressamente atreitos ao vampirismo e ao demonismo, de que dão conta inúmeros sites da Internet. Por absurdo que se pense, para um conseqüente animalismo ético, já não seria “moralmente” injustificável o bestialismo…

Por certo que, em todo caso, pode falar-se —e, seriamente, empenhar-se— numa ética e num direito relativo aos animais ou numa ética e num direito relacionados ao meio ambiente. Sempre, contudo, considerada a primazia cósmica do homem, imago Dei.



[i] A carta de adesão foi depositada em 25-9-1992 —data de sua vigência no Brasil—, seguindo-se a promulgação pelo Decreto 678/92, de 6-11, em que se registra: a Convenção “deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém” (art. 1o), ressalvada a seguinte declaração interpretativa: "O Governo do Brasil entende que os arts. 43 e 48, alínea d , não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado" (art. 2o).


[ii] José María Rodriguez Devesa e Alfonso Serrano Gomez, Derecho Penal Español, ed. Dykinson, Madrid, 1994, Parte Geral, p. 1104.

[iii] Apud Rodriguez Devesa-Serrano Gomez, op. cit., p. 1.105.

[iv] Cfr. Hans von Hentig, La Pena, trad. castelhana, ed. Espasa-Calpe, Madrid, 1967, passim.

1 comentario

Ary Holanda -

No caso das normas jurídicas que prescrevem uma determinada conduta dos indivíduos em face de certos animai, plantas o objetos inanimados, sob cominação de uma pena, como sucede quando é juridicamente proibido matar certos animais, plantas- em determinadas épocas ou colher certas flores, abater certas árvortes ou destruir certos monumentos historicamente significativos. São deveres que - mediatamente- subsistem perante a comunidade jurídica, interessadas nestes objetos. Mas nem por isso são admitidos direitos reflexos dos animais, das plantas e dos objetos inanimados em face dos quais deveres imediatamente subsistem. O argumento de que os animais, plantas e objetos inanimados dessa forma protegidos não são sujeitos de direitos reflexos porque estes objetos não são \\\"pessoas\\\", nãao colhe. Com efeito, \\\"pessoa\\\" significa sujeito jurídico; e se sujeito de um direito reflexo é o homam em face do qual deve ter lugar a conduta do indivíduo a tal obrigado, então os animais, plantas e objetos inanimados em face dops quais os indivíduos são obrigados a conduzirem-se de determinada maneira são \\\"sujeitos\\\" de um direito a esta conduta no mesmo sentido em que o credor é sujeito do direito que consiste na obrigação(dever) que o devedor tem em face dele.Teoria Pura do Direito,pag.143/144; Kelsen). Pensamento lógico:Proteger a fauna e a flora para garantir (preservar) a qualidade de vida da espécie HUMANA, mas, entretanto, porém,se se mata o ser na origem (embrião), não importa preservar o restante!