Blogia

logos

A FILOSOFIA, O CÃO E O HOMEM

      O vocábulo português “filosofia” — com símile escrita no italiano e no catalão — e ainda as palavras filosofía, no castelhano, philosophie, no francês, Philosophie, no alemão, philosophy, em inglês, decorrem do latim philosophia, ae, reproduzindo, incluso quanto ao som, o termo grego antecedente φιλοσοφία, este acaso já derivado de φιλόσοφος (φιλός > amigo, amante da σοφία > sabedoria; σοφός > sábio). O “amante” é o que se ata ou liga (do indo-europeu se-), é o amigo (lat. amicus), o que ama (lat. amo), termos que provêm do indo-europeu amma-, significando “mãe” (modelo fundamental do amor?).

      “Filósofo” não é, então, o sábio, é somente o amante ou amigo do saber, porque, como sentenciou Aristóteles, a possessão da sabedoria é imprópria do homem (Metafísica, 982b29). “Filosofia” é a amizade  do saber, não, pois, sabedoria, ou, quando equivalha a alguma sabedoria, à exclusivamente possível sabedoria humana (: estará reservada à visão beatífica ou facial de Deus a possibilidade de contemplação humana da sabedoria absoluta). Só Deus é absolutamente sábio (já o havia referido Simônide de Céosc.555-c.467 a.C.), porque conhece perfeitamente as coisas todas que são ou podem ser.  O homem pode ser amigo da sabedoria —para cujo conhecimento é vocacionado pela razão: propende ele a conhecer o numen das coisas, abdicando da mera consideração dos mitos (Aristóteles, Bkk.a)  Mas a amizade do filósofo não se restringe, nas origens, ao saber superior ou elevado, ainda que apenas humano: a filosofia é amizade pelo saber em geral, é a teoria (θεορία) do viajante ateniense, o platônico instinto dos cães de guarda, enfim: é curiosidade qualquer (VAN ACKER). 

      “Parece que fué Heráclito quien por primera vez empleó el término φιλόσοφος. Hay una venerable tradición que atribuye a Pitágoras la invención del vocablo. Según esta tradición, cuyos más destacados promotores fueron, en la antigüedad, Cicerón y Diógenes Laercio, eran llamados ‘sabios’ cuantos se dedicaban al conocimiento de las cosas divinas y humanas y de los orígenes y causas de todos los hechos; pero Pitágoras, habiendo sido interrogado acerca de su oficio, respondió que non sabía ningún arte, sino que era, simplemente, filósofo; y comparando la vida humana a las fiestas olímpicas, a las que unos concurrían por el negocio, otros para participar en los juegos y los menos, en fin, por el puro placer de ver el espectáculo, venía a concluir que sólo éstos eran filósofos.

 

La autenticidad de este relato, uno de los más bellos tópicos de nuestra cultura, ha sido discutida por la moderna crítica; más la anedocta vale en cualquier caso como emblema del noble y demasiado afán que reduce a la búsqueda del saber y que se ha conservado, durante milenios, como uno de los rasgos esenciales de la actitud filosófica” (MILLÁN PUELLES).

 
     
O rei lídio Creso, segundo Heródoto, teria dito ao ateniense Sólon ter este a fama de ser um  curioso (filósofo), porque viajava para ver outros países: i.e., para uma teoria (do grego θεορία, a que se ligam os termos especulação e contemplação) ou espetáculo (do latim spectaculum, i > o que pode ser objeto da visão, o que pode ser especulado ou, também, contemplado). Propriamente, a filosofia é especulação ou contemplação, é ver, conhecer teoricamente, não é agir, nem fazer (Aristóteles, Bkk. 982 b 19). Com que o turista moderno e contemporâneo, aparentado histórico, embora, de um mais próximo impulso haurido do estilo vitoriano, poderá ainda designar-se como filósofo, com a condição de que viaje para ver, preferentemente a fazer turismo de compras (: ir aos jogos olímpicos em busca de glória ou de lucro já não era, segundo se atribui a Pitágoras, uma atitude de filósofo). Para mais, se um turista, indo a outro país, não o queira ver, voltando-se apenas a introspectar-se em seu próprio interior de viajante, ele não precisaria, absurdamente, sair de seu lugar de origem: a filosofia é ver  a realidade, para conhecê-la. Mas esse turista não pode talvez propriamente envaidecer-se dessa trivial condição de “filósofo”—salvo se adotar, à raiz, uma ideologia animalista. É o que se depreende do fato de que, para Platão, o instinto (ou qualidade) de filósofo encontra-se nos cães de guarda, cuja natureza é “verdadeiramente amiga de saber”, uma vez que distingue “visão amiga e inimiga… pela circunstância de a conhecer ou não”. E como ser amigo de aprender é o mesmo que ser filósofo, Platão afirma que “também o homem, se quiser ser brando para os familiares e conhecidos, tem de ser por natureza filósofo e amigo de saber” (República, 376). Nesse sentido, o cão, filósofo por natureza inata; o homem, por natureza individual adquirida (ou hábito)…

A HERMENÊUTICA E OS SENTIDOS CLAROS

    Efeito acaso acidental, o fato é que o postulado da racionalidade do legislador deu fundamento, modernamente, a uma linha de divisão da hermenêutica jurídica entre significados normativos claros —a dispensar a tarefa de compreensão— e significados obscuros —objeto a que se restringiria, em rigor, a missão da hermenêutica. Também na cosmologia física se passou a falar em “matéria escura”.

    Há uma dificuldade inicial, que se encontra em apontar uma evidência quoad se da claridade não dos conceitos e juízos significados mas, sim e primeiramente, dos termos e proposições significantes. Ambos esses grupos —de um lado, termos e proposições sinalizantes; de outro, objetos de conceito e de juízo sinalizados— constituem objeto formal da hermenêutica: os primeiros, objeto formal sub quo; os outros, objeto formal quod. A evidência destes últimos exige, não sempre, mas freqüentemente, a evidência daqueles.

    Mas essa evidência do significante é problemática. Desfiem-se, a propósito, alguns exemplos triviais, o segundo deles, por sinal, histórico. A um jurista de nossos dias, posto a ler, na original escrita cuneiforme, um texto normativo dos sumérios, não bastaria saber que coisa é um boi —objeto formal quod que se supõe no texto lido—, se não pode identificar a idéia de “boi” no desenho cuneiforme. Recentemente, a embaixada de um país árabe, atendendo ao pedido de um jurista lusófono, cogitou de remeter-lhe o texto do Código Penal desse país, com o objetivo de que esse jurista se dedicasse a projetado estudo juscomparatístico; o projeto adiou-se, a remessa do texto frustrou-se: por mais especialista em Direito Penal se quisesse exageradamente avaliar o tal jurista, o que ele não sabia e não sabe é a escrita árabe em que exclusivamente se editou o referido texto codificado.

    Esses exemplos põem à mostra, suficientemente, que a possibilidade de evidência dos conceitos jurídico-normativos significantes é, em verdade, apenas a suscetibilidade de uma evidência quoad nos. Quer dizer: algo só passível de ser evidente para alguns e não uma evidência por si própria, uma evidência per se notum est. Está-se até aqui, muito restringidamente, a considerar com preponderância as proposições jurídicas significantes textualizadas, mas pode adivinhar-se que mais se problematiza uma conjecturável evidência de proposições significantes não-textuais (p.ex., usos e gestos —como a ordem de parada feita por um policial).

    De par com essas dificuldades situadas no plano dos sinalizantes jurídicos, haveria ainda de estimar os problemas dos significados. Antes mesmo de considerar-lhes a correspondência —em que se engasta a questão dos homônimos e homógrafos, dos termos verbais análogos e equívocos—, deve registrar-se que a compreensão mesma dos objetos de conceito, à margem de sua relacionação com os verbos exteriores, já constitui um problema. Ao revés, porém, dos termos e proposições verbais, os conceitos e juízos mentais são suscetíveis de evidência quoad se, ainda que em apequenado número de casos. Assim, a título exemplificativo, as certezas metafísicas —“o todo é maior do que cada uma de suas partes”— e os primeiros princípios da razão tanto especulativa —“uma coisa não pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”— , quanto prática: “fazer o bem e evitar o mal”. Não será demasiado, até mesmo, estimar que certas conclusões dos primeiros princípios da razão prática sejam evidentes per se simpliciter “não matar voluntariamente o inocente”, “não furtar”, “não prestar falso testemunho”—, porque sua apreensão, se bem possa alguma vez falhar, é tendencialmente universal, só faltando em circunstâncias excepcionalíssimas.

    Adverte-se, à raiz da sustentação fundacional da linha restricionista da hermenêutica, o objetivo de reduzir conflitos no discurso prático —em que se inclui o jurídico—, para benefício da segurança e certeza na vida social. Mas é inevitável que, com símile restrição, põe-se em risco a própria razão de ser do discurso, atuando-se, de modo pontual, a mais larga pauta firmada pelo iluminismo, que tornou defesa, a pretexto de certa concórdia social, a discussão das questões últimas da vida. Por isso, a doutrina hermenêutica do sentido claro —doctrine du sens clair, die “Sens-Clair” Doktrin— merece a crítica de Karl Engisch, no sentido de que ela remata numa proibição de interpretar. É ela, possivelmente, o suporte das “interpretações” autenticadas ab initio.

    Ao postulado de racionalidade do legislador, enquanto conjunto de atributos essenciais e acidentais da função legislativa, não pode reconduzir-se, indistintamente, a crítica destinada à doutrina do sens clair.

    É advertível que esse postulado ou presunção de racionalidade não passa, freqüentemente, de uma ficção, especialmente diante de uma legislação instável e hiperinflacionada. Não menos, o Parlamento moderno e contemporâneo fornece a imagem de um legislador mítico —de fato, a referência antropomórfica ao “legislador” apenas contorna a realidade palpável do anonimato, da concorrência de escritas, dos grupos de pressão, das secretarias técnicas etc. Mas isso não infirma a idéia central de racionalidade da lei e, pois, reconduzidamente, de racionalidade de sua causa instrumental: ainda que esta se chame um tanto impropriamente “o legislador”. Não se trata de novidades modernas: Cícero ensinara que a lei não é outra coisa que a razão justa (lex nihil aliud, nisi recta…ratio); S.Tomás de Aquino também o afirmou: a lei é algo de razão (lex est aliquid rationis), é ordenação da razão (ordinatio rationis).

    Vários elementos —substanciais e acidentais— se apontam nesse postulado do legislador racional, assim os elenca François Ost:

1. o legislador não se contradiz

2. o legislador infraconstitucional respeita a Constituição

3. o legislador ajusta os meios aos fins que colima

4. o legislador nada faz de inútil

5. o legislador é equitativo

6. o legislador não é, no fundamental, imprevidente

(até aqui os predicados tidos por essenciais; seguem os ditos acidentais)

7. o legislador é correto na expressão

8. o legislador exprimiu-se livre e amplamente durante os trabalhos preparatórios da lei

9. o legislador é rigoroso na ordenação dos textos e na redação dos títulos das leis.


    Postular a racionalidade da lei e, portanto, do legislador não importa, contudo, na recusa absoluta de ambigüidades e colisões normativas. Modernamente, tratou-se mesmo de elaborar regras interpretativas para superar as antinomias no sistema de normas —antinomias que, diante mesmo dessas apontadas “regras de colisão”, são chamadas de aparentes. A vantagem esperável da adoção desse postulado, todavia, é distribuir o ônus da contra-argumentação. Trata-se de uma vantagem econômica, por certo, mas que repercute muito na esfera da segurança social: em síntese, até que se demonstre o oposto, o legislador é equitativo e observante da Constituição etc.

O FATO DE HAVER ABORTOS ¿JUSTIFICA-LHES A DESCRIMINALIZAÇÃO?

Num mundo hiper-inflacionado de leis —e, com elas, não menos, de pretensões jurídicas, ante o vasto e muito alardeado rol de “direitos subjetivos”—, o tema da eficácia do Direito parece ganhar em importância. Mas essa relevância já se pusera à mostra entre os romanos: o Decreto de Graciano previa que as leis só se fazem firmes pela observância habitual. É preciso observar, inicialmente, que, de um lado, o desprezo à efetividade do Direito se molda ao normativismo jurídico, para cuja teoria a lei, tanto que estritamente observado o processo formal de sua elaboração, exausta a ocupação do jurista dogmático. De outro lado, tem-se, entretanto, o excesso oposto, o de um eficacismo ou factualismo jurídico: o Direito, de algum modo, equivaleria ao facto de sua aplicação social; nessa linha, poderiam identificar-se os vários positivismos históricos (v.g., Escola Histórica do Direito e Hegel), sociológicos (p.ex., Duguit: “…o direito é muito menos a obra de um legislador do que o produto constante e espontâneo dos factos”) e judiciários (Escola do Direito Livre —que um autor, com certa impiedade, chamou de “escola livre do direito”—, realismo norte-americano, realismo escandinavo).


Entre o dogmatismo legalista, alheio da questão da eficácia, e o eficacismo, há espaço para uma posição que considere, temperadamente, a importância da efetividade do Direito.

Primeiro, porque, enquanto res iusta, o Direito, evidentemente, reclama existência (: i.e., estar posto fora de suas causas), de modo que sua ineficácia corresponde ao injusto; assim vistas as coisas, já não se trata da eficácia jurídica na clave de um utilitarismo ou de uma “lógica da produtividade” (como já houve quem a referisse), mas da eficiência enquanto realização do justo concreto. Daí que a só existência de factos sociais não autoriza, simpliciter, o correspondente nascimento de direitos: o critério sumariado no aforismo ex facto oritur ius não dispensa um juízo axiológico.

A metódica do “fato consumado” —assim, porque há “consórcios” de fato avessos à configuração natural da comunidade familiar, sugerem alguns que as leis, tutelando essas “novas” instituições (p.ex., parcerias homossexuais, casamentos grupais etc.), promovam sua equiparação à família estadeada no matrimônio monogâmico; porque há, de fato, perpetrações de aborto, sustenta-se que devam essas práticas despenalizar-se ou até juridicizar-se — essa metódica do "fato consumado" manifesta um hiperfactualismo jurídico, marginado de referência valorativa (salvo, talvez, quanto a estimar serem os fatos a mesma coisa, ou quase, que os valores).

Além disso, enquanto norma, compreendida ela no sentido de uma assinalação de caminhos e critérios, ut in pluribus, aptificados a realizar a res iusta, o Direito (positivo) demanda efetividade, ex consequenti de seu múnus de causa eficiente do justo; trata-se, pois, de uma eficácia que se reconhece de maneira secundária, supeditada à consecução do Direito objectivo (ou seja, do Direito como justo).

Cabe, entretanto, ainda no âmbito do Direito normativo, ampliar a perspectiva da relevância da efetividade jurídica. É que o Direito positivo tem por fim o bem comum, que não se inclina somente à realização do justo em concreto, senão que, não o perdendo de vista embora, tende ainda à segurança jurídica. Quando, portanto, as leis se revelam ineficazes, não só se adverte um risco para a consumação do ato justo, mas também o perigo de turbar-se, objetivamente, a segurança e, subjetivamente, a certeza do Direito.

À margem de discutir, neste ponto, se a coactividade é elemento constitutivo do Direito ou uma sua propriedade concomitante, como preferia CATHREIN, é certo que a eficácia jurídica, se não decorre de uma voluntária conformação social (: consensus populi, diz HERVADA), há de emanar de uma ação subsidiária da autoridade. Sem ambas essas ações, o Direito, ainda que geneticamente formado e nascido, é como que natimorto, não se vitaliza no plano existencial. A lei, a expressão é de CARBONNIER, faz-se “letra morta”.

Por que, cabe perguntar, com a linguagem de que se valeu um político de nossos tempos, há leis que “pegam” e leis que não “pegam”? Desde logo, pode haver normas cuja função seja, propositada e limitadamente, simbólica; apenas um direito mágico que, na observação de DELMAS-MARTY, é um sucedâneo laico das práticas religiosas de exorcismo. Não faz muitos anos, como se sabe, em face do elevado índice de crimes violentos contra o patrimônio, decidiu-se, no Brasil, pela criminalização da posse indevida de armas de fogo (que, anteriormente, configurava mera infração contravencional); o discurso político inclinava a supor que, proibida a possessão irregular de armas, logo cessariam ou, ao menos, muito se reduziriam os crimes daquele gênero; houve sinais de que se mitigara, isto sim, a sensação de insegurança pública, mas os dados oficiais indicaram, opostamente, uma realidade exterior de aumento da delinqüência violenta contra o patrimônio. A eficácia da lei fora só aparente, derivada de uma tarefa simbólica: exorcizara fantasmas interiores, mas não invadira o mundo real.

Em um ambiente carregado de leis, algumas há que não se aplicam por uma resistência social derivada:

a) da ignorância ou perda de memória das normas;

b) do rechaço de leis que se oponham a usos e concepções arraigados em seus destinatários (quando não moldadas às tradições do povo, mas “produtos abstratos da razão”, as instituições, disse TOBIAS BARRETO, “não agüentam por muito tempo a prova da experiência e vão logo quebrar-se contra os fatos”);

c) do desprestígio da autoridade —que leva já à expectativa de ineficiência;

d) da falta de meios cômodos para a observância normativa.

Outras leis deixam de aplicar-se pela tolerância da autoridade, reflexo de uma inclinação à condescendência, bem registrada por MANZINI. Essa tolerância de fato —que desprestigia a autoridade— leva ao risco, sobretudo quando considerada a polarização dos órgãos de efetivação normativa, de que, preservada uma reserva de vigência da lei, a esta se recorra, subitaneamente, com seletividade ideológica e política.

Há abortos e muitos. Há também roubos e muitos mais do que são os abortamentos. E alguns dos que roubam se lesionam e, acaso, morrem em suas ações facinorosas.

Se é caso de, segundo sustentam os teóricos e difusores do abortismo, por haver muitos abortos diretos, revogar a lei que os tipica delitualmente, pois, por maioria de razão (sendo maior o número das subtrações com violência ou grave ameaça contra a pessoa), que se revoguem as leis que punem os roubos.

O ABORTO DIRETO E SEU FUNDAMENTO JURÍDICO PSEUDO-SOCIAL

Há, na essência do ser humano, uma propriedade, reconhecida já por Aristóteles, em célebre sentença: “o homem é, por natureza, um animal social (politikón zôion)” (Política, Bkk. 1.253a). Noutra parte escreveu o mesmo Aristóteles: “… o homem é um ser social e disposto por natureza a viver com outros” (Ética a Nicómaco, Bkk. 1.169b). Alguns preferem, ao traduzir esses textos aristotélicos, substituir as expressões “animal social” e “ser social”, respectivamente, por “animal político” e “ser político” (: que vive na pólis, na cidade), ou ainda por “animal cívico” e “ser cívico”. Como quer que seja, sociabilidade, politicidade, civilidade, trata-se de um próprio específico do homem, um atributo de todos os indivíduos da espécie humana, enquanto participam dessa espécie: insere-se na natureza do homem (i.e., concerne à ordem da atividade ou dinâmica, daquilo que o homem é capaz ou não de fazer), mas não se confunde com a essência humana; haveria grave erro em pensar que o homem se definiria por sua sociabilidade, por seu relacionamento social.

Sociabilidade é um conceito logicamente abstrato que se aplica —ou concretiza— no socius (associado, sócio) e na societas (sociedade, grupo, comunidade, cidade, aliança), importando numa relacionação entre pessoas ordenadas a um fim comum (fim social). Para alcançar esse fim comum de vários homens, é indispensável a coexistência do direito:

a) porque, o homem, cuja natureza é racional, ao tender à própria felicidade, não pode menos do que buscar o que é justo (: o direito objetivo, o objeto do direito); admitir o contrário —que os homens pudessem inclinar-se, propositadamente, ao injusto (: sob razão de injusto)— levaria ao absurdo de concluir que a felicidade ou perfeição humana estaria nas injúrias, nos furtos, nas lesões provocadas por uns contra outros dos consócios;

b) porque a natureza não indica tudo o que convém à coexistência social concreta: se algumas coisas se revelam intrinsecamente morais (para o caso, justas) ou imorais (aqui, injustas), outras há que reclamam uma determinação humana;

c) porque a natureza das coisas intima a relevância de certos bens (p.ex., a vida, a honra, a liberdade), impondo o conseguinte débito moral de seu respeito; mas, sendo os homens, em seu estado presente, inclinados a erros da inteligência e a perversões da vontade, convém reforçar, juridicamente, as conseqüências morais da violação daqueles bens (que dão conteúdo a certas pretensões, designáveis como “direitos subjetivos”);

d) porque, enfim, ainda supondo, em contrário da realidade das coisas, que os homens fossem impecáveis, a consecução de um fim comum, na sociedade, exigiria a coordenação dos meios para atingi-lo, e essa coordenação, exercitada pelas várias autoridades sociais, tem por causa eficiente a regulação jurídica.

Impende, no entanto, observar que a sociedade política não é a única sociedade em que vivem os homens. Com efeito, participam eles de diferentes grupos sociais (família, comunidade vicinal, clubes, associações filantrópicas, grémios profissionais, universidades, Igreja etc.), e em cada um desses corpos intermédios entre o indivíduo e a autoridade sócio-política (que, em nosso tempo, constitui o Estado) há uma regulação jurídica, ou seja: um direito positivo próprio. A essa pluralidade de ordens jurídicas acrescenta-se, ainda, o conjunto de outras ordenações normativas (v.g., as regras de cortesia), de sorte que não só da autoridade política provém o direito posto numa dada sociedade, nem apenas do direito estatal emana a ordenação societária (ter-se-ia, em acréscimo, de pensar no múnus do amor para a solidariedade social). Além de tudo isso, pecularidades temporais e localizadas podem sugerir a conveniência, em certas sociedades, de normas que não se justificam ou não convêm a outras. Célebre, a esse propósito, é a lição de S.Isidoro de Sevilha, nas Etimologias, ensinando que a lei humana deve ser honesta, justa, possível, mas, em acréscimo, “conforme aos costumes pátrios, conveniente ao lugar e ao tempo, necessária, útil…” (secundum patriae consuetudinem, loco tamporique conveniens, necessaria, utilis).

Não são todas as ações do homem —lato sensu— que autorizam regulação pelo direito. Já quanto, propriamente, aos atos do homem, praticados sem deliberação ou voluntariedade, mostra-se, à evidência, que não caberia uma disciplina jurídica para observância de loucos, de crianças recém-nascidas ou de sonâmbulos. Não diversamente, quanto aos atos humanos —que, livres, procedem da vontade esclarecida pela inteligência—, muitos há que, por não atentarem contra o bem comum, afastam a conveniência da regulação jurídica; outros —de que dão forte exemplo o amor humano e a virtude da fé—, não são suscetíveis de impor-se pela autoridade. A indispensabilidade do direito para a vida social, pois, não é justificativa para o panjuridicismo —que difundiria a normatividade jurídica para além dos limites de um direito possível, necessário e útil.

S.Tomás de Aquino discutiu a questão de saber “se à lei humana pertence coibir todos os vícios” (S.Th., Ia.-IIæ., 96, 2). Ainda antes de enunciar a solução aprofundada desse problema, S. Tomás, depois de invocar uma passagem de S.Agostinho, afirmou brevemente: “…a lei humana permite, retamente (recte), certos vícios”. Adiante, rematou: “… a lei humana é feita para a multidão dos homens, composta, em sua maior parte, de homens de virtude imperfeita. Por isso, ela não proíbe todos os vícios, de que se abstêm os virtuosos, mas apenas os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se. E principalmente os que causam dano a outrem, ou aqueles sem cuja proibição a sociedade humana não pode subsistir; assim, a lei humana proíbe o homicídio, o furto e atos semelhantes”.

Dependente da prudência legislativa —ou legisprudência—, a singular regulação jurídica de cada sociedade, ou de uma dada sociedade ao largo de sua história, pode apresentar e, de fato, vem manifestando variações, que não permitem, mais do que em certa medida, um catálogo universal e apriorístico de normas. Seria, em todo caso, impossível uma lista petrificada de “direitos” para abranger a realidade polifacética da vida: a coisa justa concretiza-se de facto, e as leis só podem sinalizar caminhos para a encontrar.

Pode ocorrer, entretanto, que legislações instituam “direitos pseudo-sociais”:

(a) am alguns casos, tratar-se-á apenas de uma situação de fato, de sorte que a expressão “direitos pseudo-sociais” equivaleria, enfim, a “direitos não-jurídicos”; nesse quadro, haveria uma injuricidade intrínseca do “direito” positivo, que se revelaria prontamente não como lei mas como corrupção dela (legis corruptio): p.ex., o decreto de homicídio massivo de crianças editado por Herodes (S.Mateus, 2-15-18); o antigo costume dos esquimós em oferecer meninas recém-nascidas como alimentos a cães; os massacres eugenésicos; as práticas antropofágicas dos indígenas;

(b) em outros casos, desvelam-se direitos pseudo-sociais secundum quid: assim, quando se importam, ao desamparo da conveniência, instituições alienígenas, de si mesmas não-adversas, em abstrato, à ordem moral, mas que se revelam contrárias à tradição, conformada à moral, da sociedade em que se intrusam essas instituições alheias: v.g., porque a forma de governo republicana se adotou em França, pensaram alguns que havia de impor-se noutros países, retamente governados por monarquias; porque os norte-americanos reuniram seus “estados”, o Brasil converteu-se de Estado simples em Estado composto, reunindo, como se disse, coisas já antes reunidas;

(c) em algumas ocasiões, há leis destinadas a pretensões ultra-sociais: p.ex., uma norma constitucional que preveja, expressis verbis, ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”, não pode, à evidência, garantir símile “direito” extensível a enfermos medicamente incuráveis; coisa diversa seria que se tratasse de referir à concorrência do Estado em prevenir e remediar as doenças; mas se essa norma, com aquele primeiro sentido, se revelaria impossível absolutamente, não menos ultra-social, relativamente, avultaria, ao cabo de algum tempo, a regra que previsse a gratuita internação hospitalar de não importa qual número de doentes, sem estabelecer a mínima correspondência com o custeio do tratamento; uma ilustração dessa ultra-socialidade normativa, com cariz econômico, pode encontrar-se na previsão constitucional que, no Brasil, cifrava em 12% a taxa máxima de juros anuais relativos a concessões de crédito (no limite, a observar-se a norma, desapareceriam as concessões de crédito…); a possibilidade da lei, como a referiu S.Isidoro, é, exigivelmente, tanto a absoluta, quanto a relativa;

(d) há omissões nas leis que, dotando-se, sem embargo, de algum papel jurídico, terminam por tutelar situações contra-sociais: assim, ao proteger uma ampla liberdade de expressão pelos meios de comunicação de massa, omitindo toda sorte de censura, a lei permite, frequentemente, o pleno trânsito de injúrias, contra as quais, quando muito, só tardiamente se obtém (alguma) reparação; ao tutelar a liberdade de ir, ficar, vir, permanecer e ficar, o legislador, abdicando de punir o trottoir e omitindo normas de seu controle, pune, de fato, inversamente, as honnêtes gens que, em certas horas, não podem sair de suas casas, nem convenientemente receber visitas, diante da impudica ostentação pública de pessoas que se prostituem, sexualmente, de todo género;

(e) por fim, há direitos pseudo-sociais por efração de hierarquia: um exemplo disso é afirmar o direito de liberdade de uma pessoa (até aqui corretamente) mas como via autorizadora, fora do estado de necessidade ou da legítima defesa, para a prática de homicídios (assim, várias hipóteses de impunidade na perpetração de aborto), sacrificando um bem maior (a vida de um inocente) em prol de outro menor (bem pessoal de liberdade).

Saber onde se fronteirizam os direitos sociais minimamente exigíveis e os que o deixam de o ser não tem resposta fácil e, muita vez, depende do grau de desenvolvimento das sociedades. Mas, certamente, o homicídio de inocentes, a pretexto de não importa qual interesse social, não é direito, é injustiça.


Breve aproximação ao conceito de Direito Natural

Breve aproximação ao conceito de Direito Natural

Parte não pequena do problema definitório do direito natural encontra-se de logo posta na esfera da pluralidade de suas acepções: o termo direito natural é analógico, aliás duplamente, porque tanto é análogo o termo direito, quanto o é o conceito de natureza, substantivo este a que referível o predicado natural. Quanto ao termo direito, núcleo sintático da expressão “direito natural”, prepondera o caráter da analogia extrínseca de atribuição (para a retórica: metonímia), embora possam ainda, em acréscimo, identificar-se, quanto ao mesmo termo, (a) uma analogia intrínseca, p.ex. na aproximação relativa entre direitos estaduais e não-estaduais, e (b) uma analogia metafórica —a “metáfora geométrica” a que se referiu Bigotte Chorão: do direito como oposição a esquerdo ou antônimo de torto advém a figura, transposta para o campo ético, da “rectidão da conduta aferida por determinada pauta normativa ou certo critério axiológico”.

Pelo termo “direito” designam-se vários predicáveis unidos mediante relações causais, tal que um dos conceitos (analogado principal) é o fundamento real e verbal —vale dizer, conotativo e de designação— dos demais correspondentes termos análogos (analogados secundários). Em outras palavras, o problema conceitual de que se cuida não pode limitar-se a referir as acepções possíveis do termo “direito”, mas exige, além disso, que se aponte o prius analógico (o analogado principal), sobre cujo numen cabe fundar a justificativa do nomen dos analogados secundários. A questão, pois, transporta-se para uma prévia relacionação de conteúdos (conceitos objetivos), só depois refletindo-se na esfera nominal.

A indagação que cabe, portanto, metodicamente, concerne ao primado de um entre vários conceitos objetivos analógicos. Trata-se, enfim, de distinguir, entre conceitos, em parte símiles e em parte distintos, a primazia ontológica que, com reflexo na hierarquização das noções análogas, justifique a equivalência das expressões verbais.

Ex hypothese, o primado analógico de “direito” pode situar-se:

a) NA NORMA

A hipotética primazia ontológica do direito na norma está a indicar, no uso verbal preferente, a norma escrita, i.e., a lei. Daí que, nesse quadro, possa falar-se indistintamente de normativismo e legalismo. Essa preferência de uso não impede, contudo, ainda que de modo secundário, o hipotético estabelecimento desse primado numa outra espécie de norma, não-escrita, a costumeira, sem embargo de que, talvez, essa primazia então melhor pudesse classificar-se no âmbito do primado do fato social. Há nisso (e ainda noutros casos) uma imbricação de espécies que não permite aqui uma solução cômoda.

A despeito da variedade de suas teses, podem, entretanto, reconhecer-se, sob a etiqueta do normativismo, diferentes autores e sistemas que cifram na lei (recte: na norma) a primazia do termo (e objeto do conceito) “direito”. De logo, seria assinalável o normativismo legalista-formalista (avultadamente, Kelsen, mas também Kant, cuja influência no pensamento jurídico moderno e contemporâneo não pode ser ignorada): indiferente ao conteúdo substancial das normas, pode essa corrente considerar-se o normativismo por antonomásia. Mas há outras formulações normativistas: o legalismo de cariz material, identificável, p.ex., no movimento codificador; o positivismo religioso, centrando na Revelação (ou, com rigor, em mais de uma apontável revelação) o antecedente para a extração discursiva do direito (assim, entre os babilônios, os hebreus, os árabes e até em algumas correntes cristãs); o normativismo universal consensualista, a exigir uma Declaração mundial de Direitos (p.ex. a da ONU) como lei escrita indispensável a “direitos naturais” (= faculdades naturais de agir).

Em todas essas correntes, o direito é, primeiramente, a norma, vale dizer que todos as demais possíveis acepções analógicas de “direito”, demandam referência fundacional a esse suposto prius analógico. Inclusivamente a idéia de um direito como justo. Desse modo, justo será o que se conforma a uma norma previamente estabelecida pela vontade de Deus (positivismos religiosos) ou do homem (inclusa a concertada universalmente). A norma já não seria a medida da conduta, a medida do justo, senão que a criadora do justo (mais ainda: a fonte da moralidade).

Poderia aventurar-se que a vontade, enquanto apetite racional, exigiria deliberação, com que retrocedida a criação normativa ao plano do entendimento. Mas, nesse caso, a norma teria de referir-se a realidades anteriores: (a) internas ao próprio sujeito cognoscente, ou (b) externas. Com isso, efetivamente, despontam algumas implicitações que redundam na negação, em rigor, do normativismo: poderia falar-se, como há muito advertira Galvão de Sousa, que símiles normativismos negam por palavras o que implicitam no pensamento. Mas o que se agudiza é o fato de esses “implícitos jusnaturalismos” (ou criptos-jusnaturalismos, na expressão de González Vicen) configurarem pseudos-jusnaturalismos (referiu-o Vallet de Goytisolo).

As referências fundacionais do direito à realidade interna do sujeito cognoscente (imanência, interiorização, subjetivização, intuição) são muito propícias ao gnosticismo. Poderia mesmo falar-se, segmentadamente, num gnosticismo jurídico, que descobre normas “jurídicas” no plano imanente de identidade entre o mundo, o homem e Deus: tudo conflui num todo, de sorte que a experiência interna do homem é já experiência cósmica e experiência mística. A consciência humana é autoconsciência do todo —ou, mais ao dia, autoconsciência de Gaia (mito de James Lovelock). As normas que assim se inventam não são, em verdade, jurídicas, porque não dizem com ações livres, mas normas de autocontrole holístico (derradeiramente, ecológico, próprias da Terra, ou Gaia, como hiper-organismo vivo em que se dissolvem, como partículas, os homens e suas relações).

b) NO FATO SOCIAL

Variadas correntes —e cabe insistir em sua imbricação noutros critérios divisórios— firmam a idéia de “direito” na principalidade de um dado fato social: o acontecer histórico (Hegel), a cultura, as forças econômicas (Marx-Engels), a jurisprudência dos Tribunais (John Austin, Kantorowicz), a raça (Gobineau, Chamberlain, Darwin), o território, a linguagem, a religião etc.

Justo, de conseguinte, é o que deriva de um fato histórico ou cultural, econômico, judiciário ou étnico etc., etc. Tem-se ao fundo o justo como o simples consectário de um fato. Assim, estariam suficientemente “justificados” os totalitarismos.

c) NA CIÊNCIA

Por certo, quando Ulpiano conceituou o “direito”, ciência do justo e do injusto, o objeto formal do saber despontara como nuclear; ciência, nessa sentença justiniana, parece melhor equivaler a conhecimento prático. A tanto, concorre outra sua conhecida conceituação: Iuris preacepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (Os princípios do direito são estes: viver honestamente, não fazer dano a outrem, dar a cada um o que é seu). Da mesma sorte, no célebre juízo de Celso —ius est ars boni et aequi (o direito é a arte do bom e do justo)—, a palavra arte não tem o sentido de poiësis (técnica), nem apresenta o caráter principal na expressão, que avulta com a referência ao boni et aequi.

Há quem vislumbre nessas indicações —e também na propensão dos mestres do Direito em cumprir o escopo de transmitir, às gerações sucessivas, a doutrina jurídica (p.ex., Franco Montoro) — a afirmação de a ciência ser o conceito primaz na analogia do “direito”. Uma compreensão desses textos que, entretanto, não se margine do contexto em que proferidos concluirá, diversamente, em que, neles, a acentuação primacial está no objeto da ciência e da arte, não designadamente nesses saberes.

Todavia, ao sustentar Oliver Holmes que o direito é “a previsão do que decidirão os tribunais”, esse autor, voltado à prognose judiciária, aparenta, de fato, conceder à ciência (ou a algo dela) o primado na analogia de “direito”. É que, diversamente do que se passa com Ulpiano e Celso —ambos a referir ciência e arte ao justo e injusto, ao bom e ao justo—, Holmes reporta-se a um fato futuro (=decisões dos tribunais), a cujo conteúdo não precede nenhuma indicação valorativa. Direito, pois, é prognosticar o resultado de um jogo, seja ele(suponha-se possível aferi-lo) justo ou injusto, bom ou mau (o que, ao fundo, não importa).

d) NA FACULDADE DE AGIR

Um número considerável de juristas, muita vez de modo implícito, centra o “direito” na faculdade de agir. Assim, de maneira freqüente, lê-se que o “direito” está fundado nos “direitos humanos”, vale dizer, em faculdades de agir e garantias constituídas, de algum modo, pela personalidade humana. Além disso, podem encontrar-se sinais dessa nuclearidade dos direitos subjetivos em correntes que, por outros critérios, se assinalaram já como expressões de positivismo (p.ex., Kant, ao afirmar que o direito é, em resumo, liberdade); também nas variegadas linhas personalistas, assentadas numa certa equivalência entre natureza humana e liberdade. Algumas vezes, miscigenam-se as fundações: o “direito” seria capitalmente o direito humano, simultaneamente enquanto previsto em alguma Declaração universal ou na Constituição política.

e) NA COISA JUSTA

Para o jusnaturalismo tradicional, o direito (por isso mesmo designado “direito objetivo”) é a coisa justa, em concreto, assim entendida uma realidade humana singular, exterior ao sujeito cognoscente (=mediedade real), relativa a outrem (=alteridade) a que é devida segundo certa proporção (=reta razão). Realidade operável, o direito ou coisa justa não é a ação humana (actio), mas, isto um, um ato humano terminativo concreto (actum), o ato ou obra resultante da ação. Trata-se, além disso, de um actum devido a outrem: a res justa é o ato que corresponde ao suum, ao débito referente a outrem. Por se cuidar de uma dívida social —vale por dizer, da relação social humana—, esse débito não pode ser menos do que o imposto segundo a reta razão, cujo objeto próprio é o ser e a verdade (=realismo ontológico). Tratando-se, porém, de um singular operável, a coisa justa não se descobre in genere et in abstracto, senão que prudencialmente, hic et nunc.

Há, pois, um direito natural objetivo (=coisa justa), que, objeto indispensável da experiência fenomenológica (pondo-se o caso como um prius metódico), deve referir-se, não menos indeclinavelmente, a certos princípios —os que norteiam a razão prática, em que radica a prudência. Esses princípios, universais embora, não são inatos, extraindo-se da realidade (=natureza das coisas, inclusiva da realidade interna dos homens) e resumindo-se, para o plano jurídico, nesta enunciação: “fazer o bem devido a outrem; evitar o mal, nocivo a outrem”. Esse primeiro princípio não comporta exceção e é universalmente apreensível. As conclusões próximas que dele se inferem são, de comum (ut in pluribus), extraídas por todos, mas não necessariamente. Desde logo, por aí se revela a conveniência da elaboração de leis, concluídas da natureza das coisas: fala-se, então, em leis naturais, dentre elas o direito natural positivo (= lei natural social). Mas exatamente porque cifrado a umas poucas conclusões inferidas do primeiro princípio da razão prática, o direito natural positivo não pode exaustar as exigências da vida jurídica em concreto: dá-se então a conveniência de instituir outras leis que, não sendo conclusivas daquele primeiro princípio, são determinativas (direito humano positivo)—na medida em que se subordinam, de todo modo, àquele princípio e ao direito natural positivo.

Sem embargo, todas essas leis —naturais e humanas— não podem exaurir a situação dos casos. As leis sinalizam critérios, caminhos que, de comum, uma vez adotados, levam à realização da coisa justa. Mas ainda cabe, indispensavelmente, considerar as circunstâncias concretas, o que á tarefa própria da prudência. A lei não é o direito; apenas auxilia-lhe a invenção.

Ao lado do direito natural objetivo (res justa) e do direito natural normativo (leis naturais), pode ainda falar-se em direito natural subjetivo (faculdade natural de agir: p.ex., o direito de educar a própria família). Por certo, não cabe às Constituições políticas, nem as Declarações universais criar direitos naturais; podem, sim, e acaso devem, isto sim, reconhecer direitos instituídos com anterioridade e que se acham gravados na natureza humana —ou intimados aos homens.

Também pode falar-se em ciência do direito natural e em direito natural enquanto fato social, num e noutro caso subsidiários do conceito central de res justa.

(No alto da postagem reprodução de pintura -"O Triunfo de S.Tomás de Aquino", de Benozo Gozzoli-, que estampa Tomás a ensinar Platão e Aristóteles).

PARA NÃO DIZEREM QUE NÃO PENSEI NAS TARTARUGAS...

PARA NÃO DIZEREM QUE NÃO PENSEI NAS TARTARUGAS...

1. Vigora no Brasil, a propósito do Direito Penal Ambiental, a Lei 9.605/98, de 12-2, normativa que —segundo a indicação oficial— “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente…”. Essa Lei, publicada no DJU de 13-2-98, foi retificada conforme publicação de 17-2-98. Regulamentou-se, em observância da norma contida em seu art. 80, pelo Decreto 3.179/99, de 21-9. Entre nós, hoje, é da competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição” (art. 24, item VI, CF/88) e acerca da “responsabilidade por dano ao meio ambiente…” (art. 24, item VIII, CF/88).


O Brasil internalizou em sua ordem jurídica[i] a Convenção Americana sobre Direitos Humanos —Pacto de San José—, à qual Convenção se juntou um protocolo adicional —Protocolo de San Salvador —sobre direitos econômicos, sociais e culturais. No art. 11 desse Protocolo versa-se sobre o “direito a um meio ambiente sadio”, prevendo-se, então:


· “Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos” (item 1)

· “Os Estados Partes promoverão a proteção preservação e melhoramento do meio ambiente” (item 2).

2. A CF/88 prevê, em seu art. 5o, item LXXIII, que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural…”.


O conceito de meio ambiente —em palavras de Rodriguez Devesa— dista muito de ser inequívoco[ii]. Era expressão já era empregada faz tempo na criminologia (ambiente, meio ambiente, meio circundante, realidade circundante). Mais recentemente o termo passou a compreender:


· os meios ambientais: solo, água, atmosfera, ausência de ruídos perturbadores

· os fatores ambientais, tanto inanimados (p.ex. os climáticos: temperatura, umidade), quanto os animados ou bióticos (animais, plantas e seres vivos microscópicos)

· o ecossistema: conjunto dos diversos processos de transformação da matéria, suas reservas energéticas e seus numerosos subsistemas.

Triffterer[iii] indica os fins seguintes para a política de proteção do meio ambiente:

 

· evitar ou reduzir os danos causados por substâncias tóxicas, sobretudo as radioativas, as químicas e as bioácidas

         · manter a limpeza das águas

         · evitar os ruídos e vibrações

         · conservar e preservar a paisagem e a natureza.


3. Na sessão de 15 de outubro de 1978, em Bruxelas, a UNESCO —Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura—, considerando expressamente que “cada animal tem direitos”, proclamou a Declaração dos Direitos dos Animais. Entre outros desses “direitos” relacionou o direito à existência animal (art. 1o), o de o animal ser respeitado (art. 2o-1), o direito que tem ele à atenção, aos cuidados e proteção do homem (art. 2o-3), o de ele viver livremente em seu ambiente natural e o de ele reproduzir-se (art. 4o-1), o “de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprios da sua espécie” (art. 5o-1). Por fim, a UNESCO prescreveu: “Os direitos dos animais devem ser defendidos pela lei como os direitos dos homens” (art. 14-2).


A atribuição de direitos —i.e., o que agora se designa como “direitos subjetivos”— entendeu-se sempre como um conseqüente lógico da existência social do homem. Não só, entretanto, cabe a sintética expressão ubi societas, ibi ius (onde está a sociedade, aí se encontra o direito), mas igualmente dizer ubi ius, ubi societas. É verdade que esses brocardos mais estariam a apontar, o primeiro, para a exigência da autoridade em todos os grupos sociais, e o segundo, à alteridade (o exemplo freqüente é o de inexistência do direito na ilha em que vivia, sozinho, Robinson Crusoe). Mas há algo em acréscimo a extrair desses aforismos: a reciprocidade de sentidos dos termos da relação —sociedade e direito, direito e sociedade— salienta que ambos só podem necessariamente con-viver.

Essa convivência no mundo real não significa, todavia, que não haja um prius lógico no relacionamento entre sociedade e direito. Pode afirmar-se, em contrário, que o direito existe para realizar o fim social, de sorte que se assinala o primado lógico da sociedade. Esta, contudo, é uma relação real de homens —indivíduos e sociedades menores—, ordenados a um fim comum. Daí que, com precedência lógica à sociedade, surja ainda o prius humano. Compreende-se, pois, que o direito se refira a um dado humano primeiro —a personalidade do homem (que não é só relacional)—, bem como que ele se destine a propiciar a realização dos fins dos homens. No direito romano, consolidou-se, a propósito, a regra hominum causa omne ius constitutum est (todo direito é constituído para os homens).


Nem sempre se atribuíram direitos a todas as pessoas: o conceito de persona, entre os romanos, à certa altura, p.ex., incluía os escravos, e estes não possuíam direitos, que se reconheciam apenas aos romanos livres; desse modo, os direitos eram atribuídos segundo um status (sumariamente: o da condição livre e romana da pessoa), mas essa situação jurídica (a do caput liberum) sempre demandava o primado da persona, cuja noção antecede ao direito. Pessoa é o suposto racional, ou, mais explicativamente, em palavras de Boécio, é a substância individual de natureza racional.


Disso resulta que a idéia de direito sempre se haja relacionado a um suposto de natureza racional. O direito, pois, compreendeu-se como realidade (e saber) antropológico e subalterno da ética, tendo por objeto a conduta livre do homem. Dessa propriedade —a de o homem agir livremente— derivam sua responsabilidade e sua imputabilidade. Essas idéias firmaram-se universalmente no pensamento jurídico, sem embargo de que se registrem, ao largo da história, algumas exceções: inter alia, a) aplicação de penas a mortos (o que adversa a afirmação de princípio, segundo a qual, com a morte, cessa a personalidade jurídica): v.g., data do séc. IX a primeira notícia de um processo formalmente instaurado contra um morto, o Papa Formoso, que foi, então, condenado por perjúrio e punido com o corte de um dedo (ou de toda mão direita), a supressão do traje pontifical e a privação de sepultura; b) inflição de penas em efígie: p.ex., em 1648, uma figura do chanceler Korfitts Ulfedt foi legalmente esquartejada em Koppenhagen; c) julgamento e possível condenação de entes sem vida: assim, na Grécia antiga, reconheciam-se coisas culpáveis de lesões a seres humanos; eram elas levadas a julgamento no Pritâneo; d) punição de animais: uma ilustração contemporânea encontra-se com a pena de morte imposta, durante a sobre-revolução francesa, a um cachorro, acusado e condenado por uma cumplicidade contra-revolucionária[iv]. Na concepção primitiva do direito romano, as Doze Tábuas previam, entre os delitos, a pauperies, consistente em danos provocados por animais atuando contra o que era conforme a sua espécie (Mommsen). Na evolução do direito romano, julga-se, em regra, que os animais selvagens e os que recuperem sua liberdade são coisas abandonadas (res nullius).

O fato de o direito e, antes dele, a ética relacionarem-se nuclearmente com a personalidade do homem não leva à necessidade de neles reconhecer-se um homocentrismo ou antropocentrismo, se se pode admitir, como ocorre com a legítima Ética cristã, um modo transcendente de considerar a pessoa humana e sua atividade, ordenadas a um fim sobrenatural.


Alguns autores contemporâneos (entre outros: Charles Stone, Peter Singer, Paola Cavallieri, Jesús Mosterín, Jorge Riechmann, Fernández Buey), em cujo pensamento, com freqüência, se encontra uma inspiração básica na hipótese evolucionista, têm firmado o eixo de uma nova “ética” na escala zoológica (ética zoocêntrica) ou mesmo abrangendo todas as formas de vida(ética biocêntrica). Desse modo, o reino moral passa a integrar-se de todos os animais (concepção mais ampla), ao menos dos hominídeos (chimpanzés, gorilas e orangotangos), quando não, de toda a comunidade dos entes da biosfera (o que se designou como “comunidade biótica”). A tônica desse novo modelo ético e jurídico está em que os direitos devam atribuir-se a todas as espécies suscetíveis de receber benefícios e suportar prejuízos. De sorte que já não haveria falar em personalidade, mas em utilidade ou referencial de benefícios-danos. Propiciada, em certa medida, por crises ecológicas (locais, regionais e planetárias) —maxime por diversas catástrofes (p.ex., Chernobyl)—, essa nova ética guarda estreita correspondência com vários movimentos ecologistas e já se apodou de utopia verde.


São conhecidos os muitos episódios literários de antropomorfização, prevalecentemente de animais. Todavia, alguns vegetais também falam, p.ex., a flor do planeta do petit prince de Saint-Exupéry; e até mesmo cartas de copas, na Alice… de Lewis Carroll. Mas predominam, na literatura, os animais que se antropomorfizam: difundem-se eles, v.g., ao largo das fábulas de Esopo, dos contos de Grimm (o rei sapo, os músicos da cidade de Bremen, os sete cabritinhos, o lobo do Chapeuzinho Vermelho etc.), nas admiráveis Crônicas de Nárnia de C. S. Lewis e nas Camperas de Leonardo Castellani, fazem a festa do Felix de las Maravillas de Ramón Llull, acham-se no Animal Farm de Orwell. Ilustrativo, em resumo, é o episódio genésico, em que a serpente, encarnando o demônio, seduz Eva a cometer o primeiro pecado. Esse antropomorfismo dos animais é, entretanto, preferentemente de cariz simbólico, não se aparentando com o animalismo ético e jurídico de nossos tempos; de modo diverso e menos freqüente, no soneto A Árvore da Serra, Augusto dos Anjos faz compartir a alma humana singular com um ente do mundo vegetal: “Deus pôs alma nos cedros… Esta árvore tem minh’alma”.


Não parece demasiada, em todo caso, a referência a um possível fato precursor do atual animalismo: na Alemanha, indo em curso a Segunda Guerra Mundial, espalharam-se cartazes, com imagens de vários animais erguendo as patas direitas, numa típica saudação nazista (em aparente resposta à saudação de Herman Göring, ali retratado). Lia-se nesses cartazes: Vivisektion ist verboten (a vivisecção está proibida). Vale dizer, que se vedavam as experimentações com animais (não, porém, com seres humanos!). Nisso alguns encontram um sinal da inclinação do nacional-socialismo germânico ao amplo movimento ecologista, ocupado da “raça pura”, da “higiene”, do “sadio sentimento” (cfr. www.cristiandad.org/nazis_animal.htm).


Podem esquematizar-se as concepções suscetíveis de adversar na matéria sob exame:

® o sujeito de direito é o homem, considerado de modo transcendente: assim, a concepção ético-cristã genuína centra o reconhecimento do direito (= res iusta, sobretudo), proximamente, na pessoa humana, com sua natureza social (pessoa que, e enquanto, se relaciona com todo o universo criado e com Deus); mas, concepção finalista, a legítima Ética cristã afirma a natureza teotrópica do homem (= dirigido a Deus, fim último, em certa medida, natural, mas cuja visão é fim sobrenatural) e, de conseguinte, estabelece, ao fundo, um teocentrismo jurídico (= o homem é o centro próximo do direito, enquanto imago Dei —imagem de Deus); o homem, nos atos propriamente humanos, age com liberdade interna, ordenado embora a fins intermédios (que conhece e aos quais pode alcançar), dirigindo-se a Deus, a quem é vocacionado, seu único fim último;

® o sujeito de direito é o homem, considerado de modo imanente: nessa linha, diversas correntes naturalistas (Protágoras, Renascimento, Iluminismo) centram os direitos (subjetivos) na pessoa humana (freqüentemente estimada em abstrato: o Homem, não os homens em concreto), sem referi-lo a uma realidade superior; em todo caso, seria possível, de algum modo, supor a persistência de uma racionalidade a que orientar a ordem moral;

® o sujeito de direito é o animal (incluso o homem): o animalismo ético estabelece a orientação moral (?) per modum naturae, sem possível referência à racionalidade (salvo se afirmada ela, contra a evidência científica, também em escala zoológica); trata-se de uma “ética” antifinalista: os animais, com efeito, atuam por necessidade natural (“por instinto”), sem conhecer a relação entre meios e fins; desaparece o constitutivo formal de fim (=que ‘o bem, enquanto conhecido); que regras de conduta seriam encontráveis abandonada toda possível ordenação a um fim último? Só lhe restaria a evasiva do determinismo (= fim imposto desde o exterior); nessa hipótese, porém, que sentido teria já uma ética de atos definidamente não-livres? Vê-se que, ao fundo, chega-se aí a uma negação da ética;

® o sujeito de direito é um ente vivo (incluído o homem), enquanto vivo: todo o cosmos se teria reduzido, nessa concepção, a ser, embora na medida em que dotado de um princípio vital, agente executivo simpliciter de fins impostos do exterior (a exemplo do que já também se indicou como alternativa determinista);

® o sujeito de direito é um ente (incluso o homem), enquanto ente: pode entender-se que, de uma concepção filosófico-cristã, para a qual caberia considerar, como realidade e objeto do pensamento, a tríade mundo-homem-Deus, passou-se a uma vertente antropocêntrica, para a qual tudo se exaure (ou se mede) com o homem, e, derradeiramente, a uma radical concepção ecologista, em que tudo se exausta no mundo.

Não pode surpreender que, diante de símile ecolatria (inclusiva de uma vertente panteísta), surjam, mais ou menos influídos do animalismo ético, movimentos expressamente atreitos ao vampirismo e ao demonismo, de que dão conta inúmeros sites da Internet. Por absurdo que se pense, para um conseqüente animalismo ético, já não seria “moralmente” injustificável o bestialismo…

Por certo que, em todo caso, pode falar-se —e, seriamente, empenhar-se— numa ética e num direito relativo aos animais ou numa ética e num direito relacionados ao meio ambiente. Sempre, contudo, considerada a primazia cósmica do homem, imago Dei.



[i] A carta de adesão foi depositada em 25-9-1992 —data de sua vigência no Brasil—, seguindo-se a promulgação pelo Decreto 678/92, de 6-11, em que se registra: a Convenção “deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém” (art. 1o), ressalvada a seguinte declaração interpretativa: "O Governo do Brasil entende que os arts. 43 e 48, alínea d , não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado" (art. 2o).


[ii] José María Rodriguez Devesa e Alfonso Serrano Gomez, Derecho Penal Español, ed. Dykinson, Madrid, 1994, Parte Geral, p. 1104.

[iii] Apud Rodriguez Devesa-Serrano Gomez, op. cit., p. 1.105.

[iv] Cfr. Hans von Hentig, La Pena, trad. castelhana, ed. Espasa-Calpe, Madrid, 1967, passim.

Uma questão fundamental para o biodireito: ¿que implica dizer que o feto humano é uma pessoa humana em potência?

Uma questão fundamental para o biodireito: ¿que implica dizer que o feto humano é uma pessoa humana em potência?

É freqüente, nas discussões sobre o aborto — e, mais além, em outros debates na esfera da bioética e do nascente biodireito—, a afirmação de que o feto humano é já uma pessoa em potência. (Cabe, para logo, esclarecer que o termo “feto” está aqui a empregar–se latiore sensu, abrangendo, como é de sua acepção vulgarizada, o zigoto, o blastocisto e o embrião; com essa simplificação terminológica: Navarro Rubio, p. 48, e Wayne Sumner, p. 216).

Suficientemente ilustrativo, a propósito do emprego relevante dessa apontada afirmação, é o que consta de textos publicados, em França, por seu Comité consultivo nacional de ética (C.C.N.E) (23–5–1984 e 15-12-1986), afirmando que “l’embryon est une personne humaine potentielle” (apud de Dinechin, p. 24).

Esse enunciado — que se pode considerar fundamental para os defensores da vida — não se mostra sempre e (pelo menos) patentemente incompatível com as teses feticidas.

Tome–se o exemplo de Mary Anne Warren, para quem “quando uma criança não desejada ou defeituosa nasce no seio de uma sociedade que não pode e ou não quer dela cuidar, então sua destruição é permissível” (p. 203). Sem embargo de essa autora acolher a orientação feticida e, como se vê, até mesmo infanticida, isso não a impediu de pretender compaginá–la com o reconhecimento de que o feto é uma pessoa em potência:

“É difícil negar que o fato de que uma entidade seja uma pessoa em potência é, prima facie, uma forte razão para não destruí–la; mas não necessitamos concluir por isso que uma pessoa em potência tem direito à vida em virtude desse potencial.

(……………)

“…não necessitamos insistir em que uma pessoa em potência não tem direito à vida. (…) ainda se uma pessoa em potência tem prima facie direito à vida, esse direito não poderia de maneira nenhuma pesar mais que o direito de uma mulher abortar, dado que os direitos de qualquer pessoa real invariavelmente pesam mais que os de qualquer pessoa potencial, cada vez que entram em conflito” (p. 200).

Alguns pontos chamam de logo à atenção nesse texto de Warren:

· primeiro, o de que a autora — suposto que a tradução para o espanhol (por mim compulsada) não pratique nenhuma traição ao texto original inglês —contrapõe pessoa potencial a pessoa real, com que avança, sem distinção nenhuma, a idéia de que a potência é uma não realidade; em outra parte de seu artigo, Warren alude à falta de obrigação moral “para permitir que qualquer quantidade de gente potencial se converta em real” (p. 201);

· segundo, o de que Warren, para justificar o aborto, acena à generalidade dos “direitos de qualquer pessoa real”, de sorte que, com semelhante formulação, a vida do feto pode sobrepujar–se por não importa qual possível direito da “pessoa real” (incluso, como visto, o simples “direito” de ela não querer ter um filho);

· terceiro, o de que, para sustentar sua tese feticida, Warren dá por suposto exatamente o que teria de demonstrar, i.e., que uma pessoa em potência não tem direito à vida (com efeito, diz a autora: “não necessitamos insistir em que uma pessoa em potência não tem direito à vida”).

Potência e realidade

Como ficou sobredito, suposta a fidelidade da tradução para o espanhol (que compulsei) de seu On the Legal and Moral Status of Abortion, Marie Warren opõe à pessoa em potência a idéia de uma pessoa real, e o faz de maneira indistinta, de modo que implicita (i) ou a afirmação de que toda potência é sempre não real, (ii) ou a de que, ao menos, o feto não é real, (iii) ou, por fim, que o feto suporta um movimento substancial a transformá–lo em pessoa.

Enquanto se entenda a potência (i.e., a potência passiva) como uma aptidão ou capacidade para adquirir alguma perfeição, ela se divide em potência lógica e potência real.

A potência lógica (ou potência objetiva, ou ainda potência possível) é a mera capacidade ideal de um ente poder existir. Trata–se de um modo possível por que um ente pode ser: um triângulo de quatro lados não está em potência lógica ou possível, porque a quadratura de um triângulo contradiz sua essência possível.

Diversamente, a potência real (ou potência subjetiva) é a aptidão de um ente, que já existe, vir a receber de outro uma perfeição ou determinação: trata–se aí de uma capacidade real existente em um ente real. É aptidão real de ser. Trata–se já de uma potência que existe em ato: em ato de potência, subordinada indispensavelmente, como já se disse, ao ato primeiro, ao actus existentiae. Por isso, pode falar–se em potência atual, e porque ela é o sujeito do ato, diz–se potência subjetiva. Vem de molde um interessante exemplo enunciado por Edouard Hugon: o embrião, diz ele, não é o menino, nem o menino o herói que acaba de ganhar uma determinada batalha: “Havia primeiro no embrião, logo no menino, uma capacidade ou potência real para evoluir e chegar ao ápice do heroismo” (p. 50).

A potência real, portanto, não é uma potência pura, porque já existe em ato, mas uma capacidade real de aquisição de perfeições, de atualizações secundárias. De que segue ser a definição mesma de potência integrada pelo conceito objetivo de ato. Etienne Gilson resumiu–o com clareza nesta passagem: “Toute essence qui ne réalise pas complètement sa définition est acte dans la mesure où elle la réalise, puissance dans la mesure où elle ne la réalise pas, privation dans la mesure où elle souffre de ne pas la réaliser” (p. 439).

Suposto que Warren não esteja a negar a existência de potências passivas reais (i) e a existência de fetos (ii), implicita–se na oposição que faz entre pessoa em potência e pessoa real a idéia de um movimento substancial. Em outros termos, o feto é objeto de uma animação temporal, que, para essa autora, não poderá, coerentemente, ocorrer no instante mesmo da fecundação, nem antes dela, tampouco no curso da gestação, mas somente quando do parto ou, como parece extrair–se de seu citado artigo, algum tempo após o parto, quando o neonato seja “completamente consciente” (p. 199). A bem da verdade, Warren não esclarece expressamente seu entendimento acerca da animação fetal e, mais além, parece desconhecer absolutamente a questão. O que não impede que o problema esteja subjacente às suas considerações.

Calha reproduzir um trecho dos argumentos dessa defensora do feticídio:

“…resulta claro que, ainda quando um feto de sete ou oito meses, tenha características que o fazem apto para despertar em nós o mesmo e poderoso instinto protetor que desperta um menino pequeno, não é significativamente mais parecido com uma pessoa do que o é um embrião muito pequeno. É um pouco mais parecido a uma pessoa; aparentemente pode sentir e responder à dor, e até pode possuir uma forma rudimentar de consciência, na medida em que seu cérebro é bastante ativo. Sem embargo, parece seguro dizer que não é completamente consciente na forma como o é um menino de poucos meses, e que não pode raciocinar ou comunicar mensagens de maneiras indefinidamente diversas, não tem atividade automotivada, e não possui autoconsciência. Desse modo, nos aspectos relevantes, um feto — ainda não completamente desenvolvido — é consideravelmente menos parecido a uma pessoa que os mamíferos maduros médios (e, certamente, o peixe médio). E creio que uma pessoa racional deve concluir que se o direito à vida de um feto está baseado em sua semelhança com uma pessoa, então não pode dizer que tenha mais direito à vida que, digamos, um peixinho colorido recém–nascido (que também parece capaz de sentir dor), e que um direito dessa magnitude nunca poderia anular o direito de uma mulher a obter um aborto, qualquer seja a etapa de sua gravidez” (p. 199).

O feto e sua correspondente relação como potência e ato

Diz uma célebre sentença de Tertuliano (que se acha no capítulo IV do Apologeticus): “não há diferença entre destruir uma vida já nascida ou destruir uma que está nascendo: quem será homem, já é homem” (“non refert natam quis eripiat animan an nascentem disturbet: homo est et qui futurus est”).

A compreensão desse juízo deve apoiar–se na teoria do ato e da potência, como fez ver, com razão, Romano Amerio, advertindo que “a substância é idêntica tanto quando se acha no estado de virtualidade, quanto quando é atuada in actu exercito” (p. 296).

Há três modos de relacionação entre a potência e o ato: o primeiro é o de sua integração ou composição metafísica: a potência como essência, o ato como existência; o segundo, o da composição física da essência: a potência como matéria–prima, o ato como forma substancial; o terceiro, o da composição física acidental: a potência como matéria segunda (ou substância) e o ato como forma acidental (cfr. Derisi, I – p. 59).

A mencionada lição de Tertuliano deve entender–se desde a perspectiva da composição física acidental, de sorte que a substância do feto permanece a mesma ao largo da história de cada homem: do zigoto ao blastocisto, deste ao embrião, do embrião ao feto, do feto ao neonato, deste ao menino, ao adulto, ao velho… Assim, Warren, aproveitando–se de seu antes referido exemplo, por mais que ela própria se queira comparar a um peixinho colorido, sempre teve a mesma substância humana, quando foi zigoto, blastocisto, embrião, etc., mas não chegou nunca a ser um peixinho.

Salvo quando se queira afirmar a tese da mudança substancial do feto para ser pessoa, sempre que se está a referir ao feto como pessoa em potência está–se a dizer que sua matéria segunda (ou substância) receberá modificações nos acidentes. A transformação progressiva dos entes humano, ao largo de sua existência intra–uterina e ultra–uterina, é ali afirmada como um movimento acidental, pelo qual cada um desses entes adquire ou perde perfeições acidentais, sem mudança alguma de sua substância, atuada pela forma substancial, não pelas formas acidentais.

A contribuição da genética: o feto é um ser humano

Das diversas teorias acerca da animação fetal, duas há que, parece, gozam de maior autoridade entre os pensadores: a da animação retardada (i.e., no transcurso da gestação) e a da animação no momento da fecundação.

Possuem ambas um estatuto filosófico e teológico possível, de maneira que cabe à ciência experimental, em particular à genética, dirimir, o quanto possa, a questão do momento da animação fetal (ou, na linguagem dos filósofos, o instante em que a forma substancial humana, o princípio vital racional, atualiza a matéria–prima já antes vitalizada vegetativa e sensitivamente).

Outrora, alguns filósofos sustentavam a tese de que o feto se convertia em homem: Aristóteles chegou a dizer que a geração humana importava em anterioridade e posterioridade: primeiro era o ser vivo, depois, o animal, enfim, o homem. Santo Tomás, no mesmo sentido, afirmou que “a alma supõe o desenvolvimento suficiente do corpo em que é infundida” (“anima requirit debitam quantitatem in materia cui infunditur” Suma Teológica, III, Q. XXXIII, art. 2º, ad secundum) e que o corpo humano “é sucessivamente formado e disposto para receber a alma” (“sucessive corpus formatur et disponitur ad animam” — Suma Teológica, III, Q. XXXIII, art. 2º, ad tertium).

Hoje, são palavras de Romano Amerio, é verdade asseverada pela genética a de que o zigoto “é um indivíduo humano com seu próprio, irrepetível e imodificável idiotropion”, de maneira que o feto é “ab initio um indivíduo”. Assim, “é inexato dizer que de um ovo humano fecundado se gera sempre um homem: não se gera, senão que é homem, e sua existência se inicia no instante em que partes vivas de dois animais, separadas deles, unem–se, individualizando–se” (p. 293).

A assertiva do consenso dos geniticistas permite concluir que a afirmação de ser o feto uma pessoa em potência significa que já tem o feto, desde o momento da concepção, o ser, a substância humana, que se vai modificar apenas acidentalmente. E, salvo quando se queira afirmar que os direitos fundamentais do homem se escoram nos acidentes e não na substância humana, o que parece absurdo, o direito fundamental da vida do homem deve assegurar–se desde o instante da fecundação.

(Madrid, 8-NOV-96).

Obras a que se refere o texto:

Edouard HUGON, Las veintecuatro tesis tomistas, ed. Porrúa, México, 1990

Emilio NAVARRO RUBIO, El momento de la uníon del alma con el cuerpo, ed. Studium Generale, Pamplona, 1957

Etienne GILSON, Le thomisme, ed. J. Vrin, Paris, 1989

Mary Anne Warren, “Sobre el status moral y legal del aborto”, in Decisiones de vida y muerte, introdução e seleção por Florencia Luna e Arleen Salles, ed. Sudamericana, Buenos Aires, 1995

Octávio Nicolás DERISI, Estudios de Metafísica y Gnoseología, EDUCA, Buenos Aires, 1985

Olivier DE DINECHIN, “La perception des risques: le poit de vue de l’Église catholique”, in Bioéthique et droit, organização por Raphaël Draï e Michèle Harichaux, PUF, Paris, 1988

ROMANO AMERIO, Iona Unum, tradução espanhola, Salamanca, 1994

WAYNE SUMNER, “El aborto”, in Decisiones de vida y muerte, introdução e seleção por Florencia Luna e Arleen Salles, ed. Sudamericana, Buenos Aires, 1995